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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

a sala

 A sala é um esquadro vazio. No escuro. A iluminação vem das janelas as janelas alheias. A sala é um piso liso e sem risco ou taco. Imita madeira escura e não brilha ou soa ao pisar de nenhum sapato. As paredes são brancas nuas. Numa delas se pendura somente um quadro. Branco com moldura preta e no meio dele um rosto enquadrado. Não há sofá ou poltrona. Não há uma só lâmpada pendurada. As tomadas estão livres. Não há tapetes ou mesas, nenhum móvel vem se intercalar no estar desta sala.
Nela. No canto. Uma perna esticada a outra dobrada junto ao corpo. Sentado com as costas apoiadas na parede que faz noventa graus com a janela. Está posto. Suposto um ser seja lá o que ele pode ser. A sala está vazia em esquadro. Nada nela se mira além daquele corpo sentado. Ali, e o retrato enquadrado. E as sombras e o piso meio de lado iluminado. Mas tudo está escuro deste lado. Ainda que as luzes ocupem o piso com sua sombra ao contrário. Tudo é um silêncio vazio escorrido o vento o tempo os ângulos que esquadram a sala. Tudo é um duro e reto e seco e exato quadrado retângulo cantos em quatro por todo o lado. Silêncio escorrido anotado. Escuro esquadrinhado. Na sala vazia em que havia só um quadro.
Mas a sala estava cheia de um outro modo de estar. Tropeçavam-se ali constantemente pés em pés de poltronas em pés de mesa em tapetes em panos em almofadas. Todas as luzes quando acesas estavam sempre acesas. Todos os panos cristais objetos todas as pequenas estátuas. E os relógios os de mesa os de pulso os de parede. Tudo era um cuco a cada quarto de hora o tempo. E livros e louças e ferramentas de lareira em brasa. E mantas por sobre os estofados e xales a abraçar os braços das poltronas e centros de mesa e bandôs e cortinas e um sufocar dos tecidos atopetava aquela surda esvazia sala que dos mesmos olhos é testemunha muda daquele ente que arde.
(extraído do livro "onde houver vida a vida haverá de vingar".)

domingo, 17 de outubro de 2010

vinte e cinco horas em Paris

Para ler ao som de Erik Satie
Espremia cada uma das marcas da mão com cuidado, a ver se havia algum suco de sair. Olhava para as unhas detalhadamente, examinando as incrustrações de sujeira, o pó das coisas. Cuidava da aparência. A cada vitrina que passava, olhava de soslaio com os cantos dos olhos para mirar o refletir dos vidros... e constatava contente os andrajos transformados em farrapos, a figura transformando-se em tiras, as passadas, dadas largas, fazerem-se em sombra. Sorrateira, esgueira pela calçada.
Drink.
Um copo de aguardente, dedos negros segurando. Quase graxa dentro as unhas. Bebia o álcool transparente: desinfetava a alma. Ao mesmo tempo, trazia-a mais limpa após o escurecer da pele das mãos, da pele do rosto. A crosta de sujeira e o mau cheiro limpavam todo o oculto oco dos órgãos que borbulhavam agora num gorgorejar de água descendo, castelo de Granada.
Eu era o miserável, a sombra de que têm medo. A sombra que não conversa. Olhos soslaiam a olhar, a olhos ocultos. Olhos de soslaio vidro e farpa. Olhos a olhar o mundo sem as farpas quando sendo só o limpo aqui de dentro. Aguardente.
Quase gota a tecla ao piano
(Extraído do livro Babel, é claro, 2002.)




sexta-feira, 15 de outubro de 2010

verso

nestes talos tocos vivos
maleável corpo dócil
verga ao vento
verga o líquido brilhuminoso
entre ar cortada seiva que jorra
vida a vir por entre escarpas
correnteza vigorosa em fogo

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

o halo

Se pegava ávido pelos rótulos pelos papéis deixados nos cantos dos becos. Pelos papelinhos que restaram nos bueiros. Poucos eram os que os viam. Poucos eram os que os liam. Se pegava rápido a roubar os rasgados esquecidos no intervalo dos trilhos, a cascavilhar os textos abandonados nos vãos. Se pegava e atinha naquelas linhas que mais ninguém lia que mais ninguém via, agora que o mundo era o que havia de mais arrumado; o que eu ocupava o teu dentro e via. O que eu que roubava o teu íntimo fazia.
Aqueles como ele que se faziam na contra-luz eram os procurados. Os que não se davam a ver. Os escuros. Os esquivos. Os ocultados. Aqueles que iam pelos extensos caminhos que ninguém jamais tivera coragem de ver ou dizer. Se pegava ávido a querer ler porque as letras eram objetos escusos, corredores e curvas que ninguém mais podia entender. Tudo o em que elas haviam tinha sido banido tinha sido proscrito. Tudo o que se quedava em papel em construção de dizer com letras articulas era matéria de somenos era matéria de pequenos era matéria de perdidos. Todos não mais precisavam dizer. Todos não mais precisavam escrever o que por dentro lhes ia porque agora todos ocupavam essa membrana comum que se hauriu no unívoco entrelaçar de auras que se engastou na captura da alma alheia. Esse não-dentro que agora se dava na pretensa harmonia do compartilhar uníssono com o que não se curva mais ao que curva ao que imprime dígito, as voltas de linhas vírgulas da ponta do dedo.
Agora era o perder membrana. Todos a invadir o dentro a conviver com corpos a captar as almas a capturar os silêncios o oco do eco uivo, o obcluso de cada um.
Luz que ocupava os cérebros. Filtro que pretendia que os olhares pudessem apreender os mútuos pelo que nos vai por dentro. Agora era o olhar aquele halo por toda parte e ter roubado o seu laivo de singularidade. Hagiometria de ventos. Ralo que subvertia os entres. Raio a desfigurar os entes, a solapar os solos e varrê-los para o mesquinho elo do nenhum. Circuitos internos a confinar a todos no lugar comum.
Agora o mundo era esse contínuo de cérebros cavos. Esse diário contemplar do halo. Esse nirvana dos que não tinham sombras arestas ramagens, não tinham o fundo das florestas e dos lagos. Terra dos agarrados, obstinados a não se deixar perder a não se deixar perder.
Se quedava silente a olhar as letras, pelo menos as letras, que erigiam grades por entre as quais se podia esconder. Entremeava-se no camuflar de fios, no perpetuar dos traços, no rabiscar das rasuras desmesuradas.
Se pegava ávido a soletrar com os olhos a conjurar o murmúrio a palavra o gutúrio agoria do instante entoado da úvula convulado na voz na corrente infinita do permanente dizer. 
(Extraído do livro "uns tantos outros".)