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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

refugiados


Chama azul, fogareiro e panela. Fundo azul, pôr da tarde estridente esparrela. Caldo azul, os mantos trajados, rosto azul, resto azul e uns borrões armados. Foco. Unhas. Vento cobertor. Chama ardente na entrada da barraca, cama caixote luzes de vela. Vozes são vozes vizinhas, entram pelos poros da tenda de tela. Iluminam as sombras como flâmulas tremulando nas paredes de tecido. Passam, passam, esbarram-se corpos, trança trança no entre olhar entre olhos entre tendas. Fogareiro água quente chaleira. Caldo azul um café na caneca de alumínio metal estridente entre dedos. Na roda comungar de caldos no final borrado azul céu azulado na fresta de céu de toda tarde.
É sempre isso de mais um dia viver. E ver descer sobre a gente a vida. Um mover-se entre as gentes; é sempre isso de ter de viver. Sentada, de longe, todo dia é uma sequência dos mesmos. Escova de dentes, os cabelos se penteiam, apruma a blusa, uso o lenço, não esquece o porvir do cada momento lento lento que sobre nós vem cair. As agruras. Homens ocos. Mulheres mudas. E aqui somos uma massa informe dos mesmos. Expulsados, repelidos, corridos, arremessados, escorraçados do lugar em que vivemos. Não se tem pátria aqui, não se tem país, não se tem par, não se tem pais, não se tem si. Não se tem nada. Reunir de corpos com vida, com algumas roupas, com algumas peças de coisas recolhidas. Sobre os caixotes a vela que eu pude arrumar. Hoje à tarde encontrei um sabão lá no tanque, agora eu o posso guardar. Tudo é isso, esse fugir a correr, tudo é zelo pelo pêlo pelo pêlo. Tudo é tormenta que entra pela tenda. Tudo é um gelo de lama de neve. Um frio, não há abrigo aqui não se sobrevive. Não têm nada. Pedaço de pão. Sopa de água e farinha. Sopa de sal e um toco de pão duro como um pau. Tem também pulgas. Agora já as moscas fugiram para onde deve estar mais quente. O banheiro para chegar leva dias. Um banho de balde já é muita regalia. Sério. Extremos. Na ponta dos dedos a unha escurece dia a dia. É preciso cuidar de cortá-la sem que se veja. Tudo é um passar de momentos. A menos. Pé no pau e na lama molhado. Pé molhado molhado molhado. Olho os outros: como é que se aguentam, de onde tiram forças para amanhã de novo preparar o caldo, lutar pelo chuveiro. Isso é o que eles que se regalam com a vida têm de vivo. Eu comigo cato piolhos, conto os pauzinhos que o ponteiro dos segundos pula. Segundo a segundo, cada a cada lentamente vivido passar marasmo do mesmo momento mudado instante a instante pelo que dizem se chamar tempo. Olha que é lento. Cada hora da manhã. O acordar com o dia escuro, o olhar o ar ainda inseguro de ser uma manhã de um dia diferente. Todos me são o mesmo dia. Estou a ficar aqui reclusa, a não conseguir variar o que sinto. Tudo é um passar do mesmo. Vivendo. Em pé. Como um pé de alface só sendo.
(extraído do livro "uns tantos outros")

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

globalizados III


Espaço entre a calçada e o meio-fio; bueiro. Passeiam os ratos: o nosso lanche. Dor. Pústula. Horror. Somos aqueles que se esgueiram por trás de barricadas.

Em cada tribo mil. Uns dizem fogo, outros dizem vil. Esmigalhados, esbugalhados, não importa em que hora.

Estalar de alvura, explosão. Dessa vez foi mais próximo, como quando se ouvem os trovões logo após se ver o clarão do raio. Só que o que entra pela pele de quem resta são faíscas, cacos, estilhaços de nenhum vitral. Certamente o que nos restava era fugir... mas que pressa para ir a lugar nenhum?

(extraído de Babel, é claro; 2002.)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

entre


Uma sala. Um toque. Uma mão. E todas as coisas vêm. O descomeço do que seja alone. O que é matéria o que é pedaço o que é inteiro. E o que seja eu ou ele o que seja qualquer um de um de um com menos.
Ser dúvida. E mesmo assim. Ser dúvida e da sala da noite. Do quarto eventual que paira na parede fazer uma história ainda que sem de fato conhecer seu avesso. Mas vá lá. É já o que traço matéria o que nas franjas se vem construindo. Quer ver?
Quem era que via cada vez que dizia que via um? Quem era que via cada vez que dizia que era outro? Quem era que se instalava entre a almofada os cabelos e o couro da cabeça? Quem era que queria estar diante desse traço de desconcerto?
Não podia mais sofregar. Não podia mais restituir. Não podia mais constituir para aquém do que seria já uma história. E no fim é dessa história não só uma que se deve falar.
E ela quem é? Um castelo de areia entremeios. E um ela não vir é de um não possível. Uma ela que narra o de onde a passada se dá de maneira mais larga. E ela vem, mesmo que dela se pareça falar. É ela que vem desse modo tratar. Ela história que vinha destina do que não se constitui mais imagem.
Em pás. Fartas são as lascas do que é que vejo. Estão lá na sala. Estão lá na mesa. Nas mãos nos ombros nos olhos e na tela depois de acalcadas as teclas.
E tudo é um rebate cálculo do que seja essa primavera ensejo. Tudo é um rebate flexo do que construa uma só miragem do que é que vêm.
(extraído do livro um mundo outro mundo.)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

desmandamentos



Matar a Deus sobre todas as coisas.
Não deixar traço do homem também.
Não deixar travo no corpo ou no espírito. Sovar as carnes as unhas e os dígitos.
Não dizer nunca mais amém.