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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

o refluxo das horas


Tarde e laranja. Mosca e nesga de sol, bagaço-cor-de-laranja, sala de estar. Ventre, ar que entra entre cada célula de fibra do corpo quente. Alto-falante anúncio, esquina e mormaço. Tarde, alguma copa, pio, pássaro e fio. Tenda; o azul da abóbada esgarçado sobre as pálpebras quebra-sol. Vento voeja vapor, menos brisa que calor. Calo. Tem som zumbindo o prestar atenção do ouvido. Tem cabana, esconderijo, pestanas em movimento lento vertical. Tendas. A rua azul e distante abafa a presença, pálpebras no ouvido.
Só os timbres da mosca e do relógio da sala de estar. O zumbe, a mosca na luz do ar da tarde esbarra no tique-taque baque-baque mecânico. Espiral e ritmo. Freio e compasso domando aos poucos a neblina sonora e zumbida z... zzz... zzz... z... z... z... zz... z... zz... z... zz. Baque-baque.
Descansam os olhos pelos objetos da sala, as pestanas vão-e-vêm lambendo a atenção. Pairam, pousam no ponteiro dos minutos que começa a fazer o movimento contrário. Lento pousar atento. Algo para fixar a vista. Ponta ponteiro a andar para trás. Leve, traz consigo as horas passadas. O ponteiro do relógio da sala a rodar para trás. Começa a comer os minutos. Perder, voltar, o refluxo das horas. Lentamente atentamente olhar e ver o retorno. Vem vindo aos poucos, moscamente, o tempo devolvendo os instantes anteriores. O ponteiro do relógio da sala rodando para trás. Instantes vividos, pestana esconderijo. Ouvido atenção zumbido. Surdo. Voejar de vapor. Quebra-sol de pálpebras no azul esgarçado em tenda. Fio, pio, árvore venta. Mormaço sonoro de voz amplificada oferecendo. Respiro, suspiro corpo cor-de-laranja recorte de sol. Pele e estar de tarde, na tarde. Sesta. Sento.    
Membros, cabeça a pouco. Um só recostar. Olhos de areia dentro. Estar de tarde na sala, nesga de sol. Café. Almoço. O relógio dá as duas e meia. Há pouco mesmo eram três e dez. Ponteiro de minutos a rodar para trás. Aqui do sofá cabeça almofada olhos e peso sobre o relógio lento tique-taque sonorizando o ar entre as paredes e o assoalho de tábua corrida. O ponteiro das três e dez indicou as duas e meia agora há pouco. Como?
O ponteiro de minutos a rodar para trás devolveu a hora anterior. Não pode ser! Súbito. Não. Sonhou razão? Não olho para trás porque tenho a certeza de ver os momentos de futuro que já vivi. Acordada. Ao final do almoço. Olho o momento presente com a consciência futura do já vivido. Pausadamente vivido. Nalguma fresta entre a realidade e o que se interpõe nos sentidos. A consciência de que já dera as três e dez. Mas eu estava dormindo? Dormindo, não, recostando. Olhos pregando a sesta, aos poucos vindo, a cochichar  percepção na sala de estar e eram três e dez. Lembro exatamente quando comecei a olhar. A poucos minutos daqui, na verdade quarenta sonolentos minutos não são quantidade de tempo a que se dê valor ao perder a noção de tempo.
Chegaram as três e dez? Não sei bem, começo a ver... Não há certeza de nada que eu possa ter. Mas... Relógio da sala? Quando? Agora vejo. Meu estômago-fome na hora do almoço, na cozinha sem me lembrar de aqui ter vindo. Na sala, relâmpagos atrás, são dez para as duas. Pode ser? Que sentido isso? Não me lembro quando deram as horas aqui. Lembro bem do momento em que vivi serem as dez para as duas, desliguei o telefone, também, você para beijo um. Quê?
Fagulhas meteoro-consciência. Cada instante. Vem. A janela do quarto trepida ao vento, olho. Relógio pequenos ponteiros no pulso a contar doze e trinta, marcando vêm. O passado passando pelos meus olhos e sentidos; onde é que vou parar esse momento? Refluxos de segundos andando depressa, comem os minutos as horas atrás. Vê-las. Lembro com menos esforço porque vivo novamente o que passei há minutos. Repasso, agora. Lembro com a memória que ainda não tenho nesse momento. Passo. Passa. Manhã. Manhã cedinho. Anoitece madrugada adentro. Ficando cedo à noite, comem-me as horas. Crepúsculo é aurora, o dia de ontem nasce às seis e meia da tarde.
Chave.  A porta a soleira a calçada a rua. Degrau escada, esquina. Meu Deus, onde é que pára? Momento rumo, onde não há sentido, aqui. Filme rodando para trás. Vãos. Quase meses? Quantos meses? Mão nos olhos! Vejo dedos, papéis e copos, óculos, buzinas, pernas e pés, corredores e salas, imagens em tubos, sorrisos, vestido vermelho, moedas no balcão, botões de máquinas, água quente, lanternas, mãos, aparelhos, mãos, não as minhas, mãos com pêlos, mãos sem pêlos, ponteiros, anéis, canetas, freios, pianos, placas, folhas e nuvens, letras escritas, risos, bocas, bocas e números digitais, bocas e faróis, bocas e vermelhos, meio-fio, mensagens em letras garrafais, avião, árvore-árvore, dentes e bocas, conchas, línguas e bocas e saliva, cadeira, janela, chuva, cigarro e escuro, rabanetes, cabelos ao vento, chão, chaves e portas, caixa, lâmpada, gatos, pneus, flor, homem, sorriso, livros, mulher, guias, pedra garrafa e cacos, olhos, olhos, olhos, mãos no abdome, cólicas intestinas, lâminas-medo. Luz.
Agora sinto. Pálpebras. Olho escuro. Penso. Pêssego. Pele. Espelho. Meu cabelo de cachos curtos, arranhão perto da boca ardendo, ardendo. Olhos escuros, pele de pêssego. Uma menina no espelho ôlho/olho de dentro dela. Dentes-de-leite, lábios brilhando vermelho-escuro, boca pequena, sorrio careta língua molhada olho para mim, olho para mim. De dentro vejo os meus cinco anos a menina que fui sou ainda sendo.
 Queria ver como eu era quando eu soube serem os meus cinco anos o sonho projetado de lá, daqui, quando eu sou adulta. Sou essa eu que era eu, sempre soube. Vim aqui adulta ver de perto porque sempre soube que o presente, eu aqui criança, não passava de um instante, um pensar sonhado de quando eu já era grande. De quando eu já sou adulta. Quantos anos eu teria quando adulta? Agora eu sei quantos anos eu teria a fio. Teria vivido em vãos a vida a resgatar esse instante/mina a olhar para mim. Vendo só eu mesma e saber ser projeção de meu futuro adulta essa consciência. A fragilidade o tempo a vida.
Agora aqui me reconheço o rosto o arranhão e o sorriso carmim de boca vermelho-baba e pequenos dentes. Sinto aqui de dentro a olhar para ela e ela para mim.
Mas quem mesmo somos essas duas formas que me desconheço? Abismo. Semblante no espelho, vejo a criança, sou-a adulta, dentro aqui num corpo e o que venho a ser? E quem venho a ser essa aqui instante comprimida inteira passado e presente que se corporificam num olhar no espelho? Quem mesmo?
Cada experiência minuto a minuto perdida para sempre dentro de uma caixa escura a guardar memória que transformo e teço a todo o momento. E aquilo que não teço na memória urde-me o corpo, estremece-me o corpo, cada membro quente e o meu sangue dentro a correr nas veias. E não me reconheço.
Olho agudo para o espelho e vejo o corpo que sou estranho corpo de quando sou criança e penso quem sou cada vez que encaro milímetro a milímetro essa cara no vidro. Penso: é o estranho rosto da criança com o qual não consigo me familiarizar, mas é a criança quem olha estranho para si, lembro bem desse momento.
Olha estranho e não se reconhece -- agora é próxima essa experiência que tantas vezes tive e de que tantas vezes tive medo. Olho-me, como me olhava, no espelho e não vejo, como não via, em meu rosto algo conhecido ou alguém a quem reconhecer. Quem era e sou a menina tão pequena? Quem sou e fui essa aqui adulta a me olhar do espelho? Estranha, a ponto de parecer outra pessoa essa que me olho no espelho. Onde é que estou, mesmo? Quem é que sou, mesmo? Abismo.
(extraído de Babel, é claro; publicado em 2002)

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

epifania



naquele dia especial nem quente nem baço nem frio
nasceram muitos meninos nasceram muitas meninas
no quase andando estiveram aprendendo sobre as coisas da 
                                                                                         vida
a água do regato que acaba as árvores que secam na colina –
esticando bem a corda o que se consegue é o som do violino
e curvando aos poucos a haste se constrói um instrumento fino

dançando um pouco adiante
quando tinham as pernas mais taludinhas
perceberam que a dança poderia dar rasteira
e derrubando um a um
num treino de celebração
aprenderam a dançar aprenderam a lutar
e assim amor-raiva circunscritos
do âmago do ânus ao alto da cabeça
estalados e transidos luminescentes e trazidos
guardaram nas mãos e nos pés
guardaram na ponta do dedo
uma eletricidade que não se traduz
uma voz que não se exprime
um sopro quente de luz

agachados a espreita
olharam para tudo e viram que ainda precisavam compreender
e como ninguém havia que os explicasse
caminharam rumo a inaugurar o seu próprio conhecer

no meio da noite escura alguns
no interior da floresta 
outros na capoeira funda
outros no rio enorme
outros nas plantações carvoeiras
outros dentro dos porões
outros ainda rente aos esgotos
outros mesmo no meio-fio
todos e cada um ao final do mesmo dia
entraram no inferno que tinham
e de dentro da profunda agonia
descobriram o seu próprio meio:
medo dentro da barriga medo a percorrer a espinha
raiva do não consigo pena do ver-se sozinho
tombo queda tropeço tropeço
e ao fim eles conheceram todas as suas fantasmagorias
de dentro do centro do cerne
no olho do desconhecido no coração do inominado
souberam sem ser com a língua
que do escuro de seus medos
há um outro que parir

construíram então a canoa
engendraram a passagem  
desenharam de borda a borda
a ponte acima do abismo
e dali saíram corpo
e dali saíram curva
e dali saíram fluxo

passo a passo cada pé
inúmeros transformados
iniciaram a trajetória
empurrados pelo vento de si
sentiram fadiga e tiveram dúvida
mas seguiram flecha

entrementes surgidos tornados
tufões de sopros alastrados
seguiram todos múltiplos
para o algo desconhecido de cada único:
atingir abarcar encontrar
os mundos que se inauguram   
no novo de cada gesto