Na
sarjeta. Estava. Há meses. Não conseguia compor. Não conseguia falar. Assistia
ao mundo de dentro de si. Assistia. Só assistia. Os de fora faziam contato
feito visitantes de um aquário. Passavam de fora. Dirigiam-lhe umas palavras e
ele só via isso e não entendia o que é que podiam querer. Aquela língua não
entendia. Nada nos de fora lhe era familiar afora o fato de serem humanos.
Afora. Isso, mais nada. Aquele buraco no qual se escondia. Aquela toca em que
se via metido. Aquele canto. Escuro. Canto escuro de todos. Aquele silêncio.
Aquele oculto em que se metera. Aquele escuro. Aquele aquilo. Um silêncio e um
não querer proferir uma palavra sequer. Só rosnar. Babar de quatro no chão. Só
virar bicho. Em meio a excrementos. Mijar na sala. Na parede, sem considerar as
convenções. Ser à solta. Solto fera animal. Rosnar, grasnar, ricochetear,
ranger. Ser a ponta. Bicho desligado do resto do mundo a me supor. Bicho
apartado. Comendo gramíneas. Vivendo no estábulo. Eu estou aqui mesmo oculto.
No umbigo do migo. Aqui estranho. Quem vem lá? Do lado de fora? Que me
reconhece nesse instante agora?
Seus
olhos encontram os meus com muita freqüência, no silêncio. Em cheio e não de
soslaio, de modo furtivo. Seus olhos me encaram como a indagar-me
constantemente quem sou. Essa pergunta algo funda me deixa um tanto
desamparada. Preciso de teclas. Meus dedos tremem, você pode ver? Sou na medida
em que percebo o que do outro é capaz de me perceber. Eu estava lá e não sei ao
certo até que ponto o compreendia. Eu o assistia e recebia com minhas mãos.
Queria ver se era possível ele me explicar de onde é que ele vinha. Para onde é
que ele fora? O que o impulsionara àquele gesto extremo, o que o levara? Quando
tudo é vórtice, voragem, anel. Rodamoinho onde tudo pára e o que quer que
sejamos não é capaz de conter. O movimento sem fundo. O ato sem medo de
deixar-se escapar pelo ralo. Deixar de ser para fora. Olhar-se dentro, até o
avesso, tocar com a planta dos pés, com a ponta do dedo da mão. O que comigo
guardei aqui nesses meses foi um rodamoinho bem fundo. O que sei. O de que
preciso é sentar-me ao piano. Tocar, tocar, cada uma das teclas ao toque de seu
dedo cede, dura, reta, abandonando as vizinhas teclas. As cordas do piano
tecladas cedem à imposição de seus dedos. Reconhecia que ali estava inteiro um
homem. Constituído de si. Voltado. Um homem acordado como poucos são acordados.
Um homem livre. Capaz de sustentar seus sentimentos. Capaz de conter o que
sentia e aplicá-lo na ponta dos dedos. Não à pergunta. Eu não poderia agora
perguntar-lhe o que lhe ia por dentro. Se ele respondesse era porque iam-lhe
idéias, e eu o contemplava ali inteiro entregue aos seus dedos e ao piano. Não
à pergunta. Jamais me deixarei conduzir novamente para longe dessas teclas. Era
tudo o que eu queria. O que eu queria era supor que houvesse um grau elementar
de possibilidade de ele movimentar-se em direção ao seu sustento. Digo como
coluna vertebral, como espinha dorsal. Talvez devesse trazê-lo para fora, para
a luz. Talvez devesse interpelá-lo. Não precisa de água, não precisa de pão?
Não precisa dormir? Dormir é o único movimento que posso fazer para aquém da
música. O quanto dormir me ultrapassa? Quero ver o quanto de mim quer essa
música antes que eu ceda ao sono. Tocar. Tocar. Tocar. Variar dedos e teclas.
Roçar o teclado. Mais que ouvir, tocar como se só tenha dedos para isso. As
mãos. Precisas e rápidas passando sobre o teclado. Tocar. Tocar. Piano. Rápido sobre o teclado. Aqui há vãos. Há frestas. Meus
olhos encontraram os seus, isso foi o suficiente? Não pensei que fosse. Não
pensei que existisse. O quê? O eco! A reverberação dos mil sentidos que pode
ter cada um dos gestos. Não há nada aqui que possamos comer. Ele não fala. Ela
não diz. Quero ver qual de nós cederá. O que é que nos ultrapassa. O espesso. O
fio das teclas a cortar os dedos. As pontas, as palmas. Do pé ao piano aos
movimentos lentos. Talvez eu o pudesse compreender. Digo. À sua música. Mas não
posso. Nada me atravessa mais nesse momento do que contemplar seu rosto.
Acompanhar seu movimento. Ela me olha e eu a vejo. Estou aqui mas a vejo. De
fora, a vendo. Vislumbrar o fora, habitar externo. Comunicar é não estar em
contato com o outro extremo. Eu tremo. Olhos em trincas de sangue nos globos
brancos. Escuro. Há mais luz em algum lugar dessa parede. Eu não posso mais
dizer nenhuma palavra. Eu não posso mais te enxergar daqui. Mas o fato é que
você me vê. Você daí. E o que você vê? Que eu estou aqui solto. Sem nada
pregado a mim e depois, como que por encanto, aos poucos, começo a enxergar os
seus olhos. Seus olhos me viram e isso fez algum sentido? Um movimento seu na
verdade me mostrou o quanto movida você estava por alguma coisa em mim. E não
era música, talvez eu devesse lamentar. Talvez eu devesse me desculpar. Mas o
fato é que você está aqui de fora e consegue ver e se incomodar o suficiente, a
ponto de isso mover algo em você. A ponto de eu e a música não sermos mais um
contínuo. Por agora, ora. Instantes se quebram, se perdem como as notas que não
tocamos, não anotamos nas teclas. Mas há intervalos. Intervalos de respiração.
Há o pulsar ininterrupto de algo que precisa tocar. O tempo todo. O tempo
inteiro imprime-se na pele da ponta dos dedos dos nervos das dores. Algo como
uma mecânica que não pode parar: é maior que mim. Mas um pão, um pouco, num
copo que seja, de água de leite ou de vinho? Um cigarro que se acenda? Isso na
verdade é quase pouco. Intervalo... Espátulas que arrancam ocos de dentro da
gente. Dedos, teclas. Ditos dígitos. Todos os dizeres vêm assim, aflito. Isso é
um não calmo mar. Leite que deita seu caldo por entre as frestas. O espaço de
não tocar. Olho olho para você. Aqui é que você se esconde. Trincas nos olhos.
Meu trajeto é injetar novamente os globos e me fechar. Eu não vou mais querer
passar. Parecia assim tão claro e lá está o olho feito pedra, feito vidro a
varar o ar. Atravessar. Pulso, punhos. Cesso. Acesso. O quebrar da música. O
quebrar do vento.
(extraído de uns tantos outros.)