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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

linhas (escrito antes de haver facebook)



"Da sala enfumaçada
Pra onde foram meus amigos queridos"
"Blue Riviera", Zé Rodrix
 
– Alô, Telma? Feliz aniversário!
– Quem está falando?
– É Vera.
– Vera?...
A pergunta significava um vazio, um oco na memória. Era uma deflagração de ninguém. Por um instante esse vazio me abalroou e eu me deixei cair nesse oco e pensar o que diabos estava fazendo. Mas a vontade era continuar e ver aonde é que esse oco poderia dar, porque afinal ele ainda não tinha chegado ao nada. Era por enquanto só um fisgo de medo.
– 1976, ginásio, 8ª série. Você sentava ao meu lado. Éramos números subseqüentes na chamada. Costumávamos nos chamar de melhores amigas, uma à outra. – Não sei o que me deu, fui acometida do verbo e da linha lógica do tempo. Ela silenciou. Eu silenciei em reticências.
– Nossa! Vera? Veruska! Verinha?! – aquilo me trazia um sim de alegria.
– Isso mesmo – e meu emudecer de surpresa...
– Como você lembrou?
– Ah, eu sempre me lembro. – Considerei o até que ponto a verdade era caso nesse momento. Dar ponto de importância imorredoura. Perpétuo admirar. Mas, que mais?... Era o que era, o dia do aniversário dela, e de umas tantas outras pessoas que passaram pela minha vida, eu não esquecera, tivesse isso o significado que tivesse.
– É? Puxa... – aquilo queria por conseguinte dizer que no caso dela o mesmo não correspondia à verdade.
– Enfim. Você hoje, pelo que me lembro, está fazendo 43 anos, né? – denunciei.
– É verdade. Você, disso eu sei, é um ano mais nova do que eu...
– Aí é que você se engana...
– Como? – perguntou ela, abalada em sua única certeza quanto a mim naquele instante.
– Eu agora tenho 14 anos, amiga.
Por um momento houve um silêncio, meio dúvida, meio surpresa; depois, é claro, aquilo se desfez em uma risada:
– Claro, você continua jovem e bela.
– Não era bela...
– Bem, isso era uma questão de ponto de vista. Você sempre não se deu valor.
– Verdade. Mas a verdade é que os meus 14 anos de agora são bem mais jovens que os daquela época.
– É? – ela sorriu. – E como é que você fez para se manter assim?
–  É porque não se trata de manter, mas de mudar, sempre, muito, intensamente.
– E isso te trouxe de volta os 14 anos?
– Na verdade, não. Porque nada voltou. Só avançou; foi adiante, transformando e assumindo a forma de um outro vir a ser.
– Sei, sei. – desconversou ela. – Mas, me conta, como é que você vai? O que é que você tem feito?
– Ahhh, ao longo desses 28 anos, você diz?
– É – primeiro ela respondeu contente – bom... não...– depois ela percebeu – é... estranho, né? – por fim ela se deu conta.
– Um pouco, mas a proposta era essa, né? – afinal, eu tinha de ceder...
– O que a fez ligar?
– Ah, isso, de eu sempre lembrar, sempre lembrar. Peguei seu telefone na internet, achei que você poderia se surpreender, queria ver qual ia ser a sua reação. Só isso.
– Assim, só pra brincar?
– É. E viajar no tempo. No que eu fui, no que nós fomos e no que nunca mais seremos... entrar em contato com o passado e ao mesmo tempo com a distância irrevogável de quem éramos naqueles tempos... – definitivamente eu estava sincera.
– Nossa, como você ficou trágica. Bom, você sempre foi trágica – recordou-se ela.
– Sempre, é verdade. Mas essa constatação não necessariamente inclui a tragédia.
– É, mas, e agora, o que fazemos? – pelo visto meu intervalo tinha conseguido tocá-la.
– Não sei. Na verdade o propósito era a surpresa do passado vindo. Como você se sentiu?
– Ah, não sei, né? Primeiro veio a sua imagem, a minha imagem, a gente junto; depois foi aquilo dos 28 anos. Ainda estou no impacto.
– No lapso.
– Como?
– No lapso de tempo – ajudei. 
– É, deu uma coisa.
– Estranho, parece um vazio, porque a gente procura. E o engraçado é ouvir-nos a voz. Não somos mais, mas ainda temos provavelmente um laivo da voz.
– É. A minha está ficando grossa, de tanto fumar. Você fuma?
– Parei. Faz cinco anos. Uma perda...
– Alguém muito próximo?
– Como assim?
– A perda, ora.
– Não, a perda foi ter parado. Adorava fumar...
– Ah...– ela respondeu, como um eco no longe.
Eu queria saber se tinha mais, de onde ou para onde iria aquilo. Mas o eco foi se desfazendo ao longo do túnel do telefone. Fomos nos desvanecendo. Não havia mais. Eu não queria perguntar mais nada. Não queria saber de casamento, formatura, profissão, a vida, enfim, essa que fica toda fora. Ela perguntou, contudo:
– Você está casada?
– Quase. Ainda não se pode dizer que seja um casamento...
– Por quê?
– Coisas. Essas coisas que só tem sentido contar se...
– Se...
– Sei lá, Telma. E você? Por que perguntou se eu estava casada?
– Ora, pergunta. Pra saber. Para ter um pouco de parâmetro, para me basear.
– Hum. Ajudou?
– Digamos que você não ajudou – concedeu ela.
– Folgo em sabê-lo.
– Você está pior, bem pior...
– É verdade, rejuvenescer tem um preço. Eu tenho um pouco de medo de lhe perguntar sobre a sua vida. Porque acho que você me diria coisas que não me interessam.
– Então, por que ligou, puxa vida? – reclamou ela, redundante.
– Para saber como é que você era.
– Uai, então, quer ou não quer saber?
– Na verdade quero, mas não quero saber o quê da sua vida. Quero saber o como. E isso você não deveria ou não deverá me contar, porque não tem sentido... ou.... – formulei a lógica e estaquei em silêncio no ou... O que eu queria com aquilo?
– Você ainda está aí?
– De que você, você está falando? – minha recuperação foi praticamente instantânea ante o alento de vê-la me procurando assim no vácuo passado-presente pelo fio do telefone.
– Dessa que me ligou, ora – dessa vez quem foi instantânea foi ela.
– Então... ficou curiosa?
– É, fiquei com saudades, com curiosidade...
– Se continuar, vai ver que ficou mesmo foi com medo... –  tapa na cara.
– Medo?...
Era essa a minha intenção desde o início? Que afeto havia ali no eu querer tanto falar com ela, chegar a vê-la? O que havia nisso? Só um jogo do que será que fomos vindo desde o passado? Não; absolutamente. Ali estava eu procurando amiga, procurando a mim. Procurando assunto ou acontecimento. O que em mim me fez digitar esses números de telefone? O presente vácuo, um momento equívoco de turbilhão silêncio no meio de uma tarde. Depois, a vontade-medo, que me quase impediu o movimento. Depois, o golpear do coração ensangüentando todas as minhas veias, inundando adrenalina pelos tecidos e pelas minhas válvulas todas de sentir. Um sentir-me viva. Contemplar o medo de pé e braço com o passado agora. O conhecido no não imaginado. Isso era uma era da procura do descompasso. Ou era fugir do presente? Ou era abraçar e saudade?
– Vera? Vera?
Ouvi e não pude ainda fazer subir o ar e transformá-lo em voz.
– Vera? – insistia Telma, numa voz sentida de quem havia acabado de perder uma amiga.
Eu ainda fiquei assim, intercalada de dúvidas. Sentindo no corpo o impacto dos golpes que o medo fez meu sangue aplicar. Aos poucos, fui sendo vencida por um quase vir de inspirar e expirar. Uma quase trégua interna. Pude encontrar uma fresta naquilo, uma fresta dada pela voz de Telma que do outro lado continuava a chamar meu nome:
– Vera? Vera? Para onde você foi?
De repente aquela pergunta me fez retomar um caminho que eu não havia previsto. Um caminho de pergunta no passado:
– Quando? Depois que você mudou de escola?
– É... na verdade não, estava me referindo a agora – respondeu ela, no presente. – Que susto. Que silêncio estranho.
– Você teve medo? – perguntei.
– Quando? Agora? Não sei, não ouvi a sua respiração, mas sabia que você não tinha desligado...
– Não, não agora. Você disse que ficou com saudades, ficou curiosa. Você também sentiu medo?
– De quê? – estranhou ela.
– De um reencontro. Do que poderia ser nós duas nos reencontrarmos depois de 28 anos. Teve medo? – insisti.
– É... bom... pra falar a verdade, é estranho. Mas estou falando isso só porque você perguntou. Na hora eu ainda não estava sentindo, ainda, não. Por quê? Você teve?
– É, fiquei completamente atravessada pelo medo, honestamente. Medo de você reagir de maneira indiferente. Por exemplo: Alô? Telma? Feliz aniversário! E você: Quem fala? E eu: Vera. E você: Vera?
– Bom, mas foi exatamente isso o que aconteceu.
– É, mas quando eu disse que Vera era você me chamou do passado, minha cara.
– É, ué, o que você esperava? Que eu virasse para você e dissesse: Ah, essa Vera? Não me aborreça! – brincou ela, sem perceber o quanto podia estar fazendo aquilo, sem chegar a fazer...
– Ué, podia. Não podia? Eu não sei no que você se transformou. Na verdade, eu nem podia de verdade saber ainda o que você era. Eu não sabia o que era. Se bem que também ainda não sei o que sou, essa que é a verdade.
– Por essa razão você ainda está com 14 anos... – ela concluiu, rápida.
– Não, aí é que você se engana. Por essa razão é que eu conquistei, eu finalmente conquistei os 14 anos. Porque descobri que na verdade o que eu sou ou o que eu era ou o que eu vou ser pouco importa. Pouco importa. – Falei tudo aquilo pensando até que ponto ela estava disposta a ouvir tudo aquilo...
– Você conseguiu, então. Esse parecia ser o seu projeto.
– Como assim? – não entendi o que ela quis dizer. Será que ela...
– Você parecia querer chegar a isso, com as coisas todas que dizia. Isso de não dar muita importância para essas coisas todas a que as pessoas dão importância.
– Ah... isso – digamos que ela também havia conseguido.
– Eu gostaria muito de te ver – ela disse, dando ênfase à palavra muito... E concluiu: – essa mesmo que você diz que não sabe o que era ou é ou virá a ser...
(extraído do livro "uns tantos outros".)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

de onde quer que se esteja



Aqui era a pé que a gente ia. Nesse caminho. Por essa via. Aqui era com medo que se seguia. O coração a medo. A solidão. A noite funda e o inferno de sempre ser com agonia. Aqui. Era por aqui que se seguia. A mesma via. Eira sem beira. Abismo tal que se expande até ocupar a outra fronteira. Aqui era sempre que se detinha. Outra vivência de que por um sim ou por um não qualquer que seja se constrói o lado do outro lado de um novo lado de onde não se pode ver ainda de onde quer que se esteja.

(extraído do livro "um a um - os poros da paisagem pólen".)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

mar



o mar revolto me espanta
porque me apaga
o mar revolto me atrai
porque me afoga e aplaca

(extraído do livro "onde houver vida a vida haverá de vingar".)