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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

do tremor da paisagem



Da janela do vagão via a paisagem que jamais pensara existir. Tudo aqui é tão diferente do que já vivi que o que desconcerta é o medo de isso não mais viver. Pedaços de paisagem. Árvores enormes. Animais que passam. Lagoas poças. O andar lento de um bicho peludo. Os olhos pretos de uma vaca que me encara. Uma criança correndo nua um homem correndo nu uma mulher correndo nua e tudo tudo tudo passa como que por um pedaço de pano. Céu rasgado de azul. Estrada cascalho trilhos. Casas caiadas ou com o esqueleto a frio. Tudo é um nu das pessoas por esse planeta que vivem. Como estão chamas. Como estão carne como estão vivas neste pedaço pequeno que vejo daqui da viagem.
Só passo. Não fico. Tudo é um espaço que não para vai mudando o visto. Toda viagem é um confisco do que a gente nunca pensou existir e que nem agora pode imaginar direito o que é que seja aquilo. Tudo do trem fica tão vago tão em silêncio tão candente morno que nem parece inverno só porque pisca o sol a luz sobre a Terra inteira sobre esse chão.
Pinta o sol essa luz que esquenta a vista ainda que o corpo e a alma não esquente não.

(extraído do 'livro' "um a um - os poros da paisagem pólen")

sábado, 12 de setembro de 2015

válvula vazia II ou a pelo



      Tudo é uma parede de músculos que respiram a despeito do que se queira. Alçapão sem lanterna. Chegar ao topo descobrir ao fundo o ápice do fosso. Céu gelado tanque de água escura. Gotas que caem da laje. Nenhum bote nenhum remo nenhum corrimão. Nem claraboia nem todo zelo podem fazer parar o que essas paredes insistem em contrair. Algo como uma força voraz que arrebata qualquer fluxo. Válvula sem fim alimentada por sei lá que recorrente apelo.
      Levantou da cama para mais um dia. Olhar sempre no espelho. Ver o vago da noite inteiramente perdida no mesmo pesadelo. Naquele dia nem a barba faria. Nada de passar pente no pelo. Nem tomar banho. Nem trocar a roupa com que já estava há dias. Nem sequer preparar o café. Nem o jornal. Nem a luz do dia. Nem um passo para fora. Naquele dia estava decidido ele só faria o que lhe dizia tudo isso que lhe viajava a contrapelo.
      Sentou-se na sala. A cabeça fria. As mãos frias e secas descansavam sobre os braços da poltrona. O jornal do outro dia jogado ao pé. A xícara com café pela metade largada ali. Nem o tapete nada lhe dizia. Nem ele era algo que àquilo tudo assistia.
     Sentou-se sem tomar coragem. Nada premeditado. Só se sentar na poltrona como sempre fazia. Nenhum lápis na mão. Também nenhuma caneta. Nem a nesga de sol pela janela. Nem os barulhos do elevador. Nem o rumor constante da rua. Nada lhe arrancava de dentro daqueles cômodos que dentro dele só havia. O mundo a lhe acabar ao redor. E o seu único destino lhe comprimia. Ser de papel. Sem ter mais que duas faces. Bidimensional tudo o que pudesse sentir era agora para ele a única parte do jogo que lhe cabia. Ficar sentado ali. A esperar sem esperar. Sem desejar. Ou imaginar. Sem nada diante de si. Só o que lhe vinha por trás. Só o que lhe vinha por dentro. Só o que ele tinha entre o ar e o que lhe viajava nas veias. Pelos e a pele.
     Como chegar até aquilo que lhe fazia biombo que lhe fazia fronteira. Fibra membrana que vibra ritmo que sempre se esgueira.


(extraído do 'livro' "afeto confesso")

nautilus - visão das escoltilhas


sábado, 5 de setembro de 2015

Paris--Roma



Quando Paris chegou a Roma todas as suas roupas estavam molhadas. Até os tênis. Até os ossos. Ele se lembrou como de encontro que não trouxera nada além de livros em sua mala. Ficou ali todo encharcado com u’a mão segurando o corrimão e a outra segurando a alça de sua arca. Lembrou-se de que nem livros ele tinha trazido ali. Lembrou-se aliás de que nada do que havia nela ele se lembrara de ali ter colocado.
Quando Paris chegou a Roma debaixo de um enorme pé d’água. Lembrou-se de que só o que tinha para vestir era a roupa do corpo que ora estava toda encharcada. E ficou ali naquele frio. Naquela noite. Em pé parado com u’a mão sobre o corrimão e a outra a apoiar-se na alça metálica de sua barca. E ficou ali todo molhado. Apanhando o ar frio o vento gelado a chuva fina que lhe cobria todo desde o espírito até o que lhe restava do penteado.
Quando Paris chegou a Roma descobriu que aquilo era um arremedo de piada. Estava em pé com a roupa pesada colada à pele do corpo por dentro dela desprotegido o corpo descarnado e desnudado. Dias de estrada a pé. Dias de vagão de carga. Estava ali. E ainda lhe luziam nos olhos as lanternas de todas as traseiras de carros da estrada. As lanternas de todas aquelas latas conduzidas por bestas. Bestas solícitas bestas solenes bestas ocupadas. Bestas caseiras que trafegam por todas aquelas vias asfaltadas.
Quando Paris chegou a Roma descobriu finalmente que nenhum sentido fazia estar vivo e em pé com uma pata apoiada no corrimão com a outra por sobre a vaga. Com o corpo encharcado o cabelo empapado e a alma a alma a alma. A alma a lhe garantir que não havia ali ninguém nem nada que lhe pudesse tornar menos vazia aquela chegada.

(extraído do 'livro' "onde houver vida a vida haverá de vingar".)

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

d dia



             Como começar da avenida. Pé. Água parada. Quebra guia perto do bueiro. E havia uma chave ali prestes a cair da minha mão. Como começar do bueiro. Com a chave na mão. Pé parado. Água não. Como começar uma palavra. Havia dias mas naquele que foi fatal era preciso montar o que ainda havia. O começo do que a vida inteira nele. Um pra trás um pra frente mas aquele foi cavado num instante perene. Que está aqui que de mim nunca mais se desprendeu. E o que foi esse dia. Recuperá-lo chave na mão. Mas com que porta que ele se abria com que casa por trás ou nenhuma. Somente a chave ao vento no ar que passava por ali. Um dia que foi um pra sempre o presente inteiro do passado inacabado que estava pra vir. Aquele dia em que nunca mais fui outra.
              Agora que se diga o que é possível o que se fez naquela hora. Chave na mão. Pé no bueiro. Água movida escorrendo ladeira abaixo acima. E nenhum presságio nenhum botão nada que se faça cala naquilo o que veio por vir ladeira aqui. Rio que corre montanha que desaba escavação. Cismo que se armou depois do dia em que nunca mais fui eu em que nunca mais pude ser outra.

(extraído do 'livro' "afeto confesso".)

pensamento inesperado


quarta-feira, 2 de setembro de 2015

a trinca


mais do que uma lembrança uma vaga



            Por que se atirar de uma pedra de uma ponte acabar com essa vida? O que quer morrer o que quer matar de que fugir? O que não quer encontrar? Onde estava no dia? Onde estava vermelho e uma capota de carro. Mas o que era vermelho o que era listado? Quem era naquele dia que estava ali. Quem estava encostado no carro? Uma camisa de abrir pés de tênis pernas cruzadas sobre a calçada. A casa diante o jardim sem cuidado a chaminé da lareira do lado de fora. A parede de vidro luminária acesa no alpendre e um copo de cachaça da mais ordinária. Quem era que estava comigo quem era eu onde estava?
(extraído do 'livro': "afeto confesso".)