Powered By Blogger

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

tarde



Já era muito tarde para dormir. Fica repetindo isto – tarde. Da noite complica o verbo que nunca se conjuga o começo ou o que se expande. Já era muito tarde para dormir. E abrir um livro consultar a rede ligar o aparelho de imagens não fazia mais sentido ali. Já era muito tarde para dormir e mesmo que tentasse vinha aquele sobreacordar.
Já era muito tarde muito tarde. Não havia disso fugir. Era ficar sem incorrer em nenhum atalho. Era sentir aquilo sem ter como fazer para sair. Nada que pudesse mais servir de escape. Já era tarde não restava mais nem o espelho. O ar estava frio e nem mesmo o sol se pondo ou levantando dava um fim àquilo de já ser muito tarde. Muito tarde para dormir. Sem mais o que fazer se não permanecer acordado. Sem um livro sem rede sem nenhuma outra imagem. Era ver era sentir arrefecer desguarnecer deixar de ser aquele que ainda poderia dormir mesmo que já fosse tarde.
Era olhos. E postura. E o corpo faminto de um gesto sem nada encontrar que pudesse arredá-lo daquele estado de estátua. Era parado ali. Aquilo tudo passando e nenhum sentimento de marasmo.
Era já evidente que por algum caminho se embrenhara. E de lá já não podia sair. Estava ali num espaço entre o que sejam as possíveis coordenadas. Nem um canto. Nem circunferência. Nenhuma curva ocupada. Estava líquido passava passava e passava. E sombra frequência fragílima já podia surpresa ser notada.
Mais nada. Mais nada. Mais nada enfim.
Acordava.

(extraído do 'livro' "um a um - os poros da paisagem pólen")

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

ainda que



 para Rodrigo Lucheta

Ainda que eu faça borrado sem palavra escrito de lado. Ainda que eu faça sem lastro sem tom sem acorde. Ainda que eu faça sussurro rumor do urro da garganta só o gutúrio. Ainda que eu faça sem nome e sem tônus. Ainda que eu faça com terror do meu próprio enredo. Ainda que eu faça sem fôlego só no gesto em espasmo desatino. Ainda que eu faça pequeno arrancado a faca do desespero. Ainda que faça sozinho naquele quarto naquele abismo o que se traça do que eu não digo o que escapa o que consigo. Ainda que eu faça no extremo do que se passa a contrapelo. Ainda que eu faça sem fim. Ainda que eu faça sem língua que me ultrapassa foge ao meu grito. Ainda que eu faça sem céu sob a borrasca barco sem leme. Ainda que eu faça aos tateios passos sem passos passos tropeços. Ainda que eu faça aos soluços o que se esgarça não é o que eu digo é o que arranco da noite dos dias o que extraio dos pesadelos. Ainda que eu faça ao abrigo do que insiste em se chamar de íntimo e que não passa da regra engendrada na pele dos primeiros dias. Ainda que eu faça comprido e não chegue a dizer o que me percorre a frio. Ainda que o corpo em estase me impeça o gesto me impeça o grito o vulto a voragem o vórtice a trinca deixo anotados versos interditos som de traçado letra só atrito. Ainda que eu faça na vaga corpo lançado do parapeito. Ainda que eu faça sem rima sem frase sintagma num texto suicida. Ainda que não chegue a nada barco na areia noite perdida sulco esboçado sístole distímica. Ainda que não alcance a palavra o que se passa não é o que eu digo mas o que me transborda os poros e rasga meus dígitos. Ainda que eu não fale mais nada que escorra dessa baba o rastro o visgo do meu corpo a corpo contra esse Eu desde o início prescrito.

(extraído do 'livro'  "afeto confesso")

sábado, 9 de janeiro de 2016

pano de coberta



Pano de coberta laranja. Tapete de sala fechada. Cortina cobrindo até o fim da parede. Sofá com manta jogada. Tudo e a luz do pequeno abajur acesa. O cinzeiro cheio de pontas e cinzas. O isqueiro sobre a mesa de centro e no meio dela toda a letra escrita. Encontrar a terra onde eu vivo. O pedaço de chão que é só meu. Encontrar o minuto que habito. O ritmo dos compassos e dos avisos. Os números desencontrados daquele dia. A hora perdida perdida. Encontrar nos trajetos perdidos a respiração de dentro da casa. Encontrar o que se deu o interdito o que ficou ecoando no corpo o que sumiu pelo sangue e pelos anos o que se foi sem nunca sair de dentro do peito. Nenhuma palavra mais dizer sobre isso. Dizer tudo sopro e soprar tudo num sopro sem frase.

(extraído do 'livro' "afeto confesso")

domingo, 3 de janeiro de 2016

na caverna o horizonte


desde aqui



Visitar outro lugar outra quimera. Esfera de fios outra atmosfera. Visitar das outras sombras do que vai pelo vão do que escapa das mãos e da respiração e que nem mesmo pulsação se não muito cuidada jamais poderá pressentir. Visitar o outro lado o caminho contrário o que não se cogita o que está no pressente no vazar do vazio no que não obstante o que nenhuma régua o que nenhuma secante.

(extraído do 'livro' "um a um - os poros da paisagem pólen".)