Uiva o vento. Uiva o
lobo. Uiva a porta com o vento. Aqui dentro o silêncio, o escuro, os vidros
quadrados da sala transluzem opacos o escuro em mercúrio da noite lá fora. Aqui
dentro é o silêncio, às vezes rangido da porta. Meus cada poros em expirar
exalar de suor sebo em feito há dias sem receber sabonete. Aqui sentada na
poltrona, na casa escura, algo suja de meus dejetos, dentro da noite dos meus
pensamentos, sentimentos. Tormenta tempestuosa é o que anuncia um relâmpago lá
fora. Aqui dentro nada, nenhuma luz elétrica, nenhum aparelho elétrico, nem
mesmo um rádio. Nada, silêncio. Não há automóveis lá fora. Já disse, lá fora é
só o uivo do vento, o uivo do lobo. Nem mesmo mais a porta deixo rumorejar
estalar ranger, quanto mais uivar aqui dentro. Aqui dentro é o silêncio
respiração rarefeita a momentos, pouco e pouco, percebo cada movimento, rumor
interno, canos orgânicos, líquido interno, escuro em oco o universo aqui de
dentro. Útero escuro úmido de vidros quadrados a bordar a sala, aqui mesmo, sem
nenhuma pessoa. Sem nenhum telefone, sem nem grilo cricrilo, sapo em coaxo, nem
vento mais uiva, silêncio ar parado. Rai relâmpago. Rai relâmpago relincho, o
cavalo, patas em tábuas no estábulo, na porta de vidro de repente batem: é o
seu um, aquele, que bate na porta e pergunta:
-- A senhora vai querer
tomar o chá de cidreira que a Clara tá preparando?
-- Chá? Claro. Cidreira.
-- Tem uns sequilhos,
também...
-- Não não, só o chá,
está ótimo, mais nada, obrigada. -- onde é que eu estava mesmo autocentrada?
Ah! Útero, úmido, relâmpagos são luzes que iluminam acendem quando a gente sabe
ficar só e quieto no escuro. Relâmpagos interrompem o breu do meu pensamento.
Desde que cheguei aqui
há dois meses é isso, um pouco só, que interrompe meu retorno umbilical. A
minha solidão assusta os ao lado. Incomoda, mesmo, eles pensarem que vim para
cá porque quis, ficar sozinha por opção, sem ouvir nenhuma notícia. Somente ler
o jornal, alguma revista, mas nada que seja notícia de voz alta eu ouço há dois
meses isolada. Mas, ainda que eles se sintam incomodados e tentem
desestabilizar com atenções meu deserto auto-escolhido, eu conseguirei chegar
onde sei lá que almejei aqui nesta casa escondida, aqui neste mato ralo,
recanto retiro de solidão.
Gume. Navalha na veia.
Sangue borbulha em vinho aberto rasgo enguio. No braço branco pulso brindo
brilho sanguinho guilfa a caldo grosso. Pinga. Água fervendo em tinta plástico
em tinta na mesa de vidro da sala do solar sozinha. Vinha. Uiva vindo agudo
aguda a dor nervura em vida, vai em vai. Uivo em mim saliva gengiva boca dentro
caldo líguido sopa da solidão conseguida. Batida vento, repetida, mas o que é
isso agora? É o chá, ah, é o chá do seu um que a Clara fez.
-- A senhora não vai
querer mesmo nem um sequilho? Olha que os sequilhos que a Clara faz são especiais.
-- Éh, não, mesmo, muito
obrigada, só o chá está ótimo.
-- A senhora vai querer
mais alguma coisa, que agora a novela acabou nós tá se preparando pra ir
dormir, mas se a senhora quiser...
-- Não, não, podem ir.
-- Boa noite, então.
Quer que feche as cortinas pra senhora?
-- Não, não, não precisa
fechar nada. Éh... obrigada. Boa noite.
-- Eu não quero
atrapalhar, mas a senhora se incomoda de eu perguntar uma curiosidade da Clara,
a senhora sabe, né?
-- Curiosidade? O que é?
-- Ela, a Clara, quer saber
se a senhora perdeu de todo o medo. Eu disse que não era nem preciso ter medo,
né, mas ela disse que quando a senhora era mais garota, que vinha com seus
pais, dava cada pulo de susto pra cada uivinho dos cachorro-do- mato.
-- ...
-- A senhora desculpa
ter perguntado, não quis ser intrometido, mas é que a Clara acha que a senhora
ainda é aquela garota e que pode fazer as pergunta que der na telha dela...
-- Não tem nada, não.
Mas fala pra ela que eu nem sei se era só medo de cachorro ou lobo que eu tinha...
É... Não, provavelmente não.
-- Ah! Lobo não era, que
aqui não tem. Mas era um tanto de bicho que tinha...
-- Era... Boa noite...
-- Éh, boa noite, pra
senhora.
Trapaça habitada. Mesmo
que sem asfalto ou luz elétrica ou ondas de radiofonia. Cápsula de ilha, não
tem mais ilha em nenhum lugar, não tem mais, não. A presença em corpo dos aqui
ao lado sempre vem. Sempre vejo outros olhos, cabeças, membros a rondar minha
volta, solicitar minha presença. Mesmo que meia. Mesmo que desdita. Mesmo que
atravessada. Minha resposta a voz articulação maxila que inescutam, mas querem
todos -- mesmo esses aqui ao lado -- o insilêncio perguntar, perfunctar.
E o polvilhar polvoraz
polvorinha picando a pele apelo de olha pra cá que eu quero ouvir, mesmo que
inescute. Ouvidos curtos, enxutos. Instar de esponjas surdas instaladas nas
paredes aurículas. Paredes-rolha amortecendo, amortecidas. Mortiça cortina
branca nos ouvidos.
E agora é isso de não
conseguir entrar pro aqui em dentro do caminho escuro, é preciso o quê? Esdruxulear
em tampa, tapar contato, intactanegar o entorno? Fazer-me em silêncio de
clausura até que todos concordem que em mim só o que sou é o sintoma? Até que
pelos olhos pelo corpo a aparência seja a transparência vulto que se atribui
aos loucos?
Penetro na caverna, jato
em viagem across the tunel of the
existence. Caverno em dentro da montanha. O que penetro, o que atravesso,
por que meio, barco-boat over the water-água
íntima caldo em vida dentro de mim? Rio escuro, subterrâneo, rio dentro de um
imenso rio, subcutâneo. Pegar um barco entrar pelo rio, entrar entrar e
percorrer o interno de meus veios. Chegar numa praia, areia branca, água verde,
clara, cristalina, água prístina dos meus medos indivíduos.
Incomunicabilidade
esperanto que não se desata na língua. Clara, eu, nós: nó, aqui à míngua
solitária tênia ameba criatura intestina indizivelmente só.
Uiva o vento. Uiva o
lobo. Uivo cão.
(extraído do livro Babel, é claro; publicado em 2002.)
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