Se
pegava ávido pelos rótulos pelos papéis deixados nos cantos dos becos. Pelos
papelinhos que restaram nos bueiros. Poucos eram os que os viam. Poucos eram os
que os liam. Se pegava rápido a roubar os rasgados esquecidos no intervalo dos
trilhos, a cascavilhar os textos abandonados nos vãos. Se pegava e atinha
naquelas linhas que mais ninguém lia que mais ninguém via, agora que o mundo
era o que havia de mais arrumado; o que eu ocupava o teu dentro e via. O que eu
que roubava o teu íntimo fazia.
Aqueles
como ele que se faziam na contra-luz eram os procurados. Os que não se davam a
ver. Os escuros. Os esquivos. Os ocultados. Aqueles que iam pelos extensos
caminhos que ninguém jamais tivera coragem de ver ou dizer. Se pegava ávido a
querer ler porque as letras eram objetos escusos, corredores e curvas que
ninguém mais podia entender. Tudo o em que elas haviam tinha sido banido tinha
sido proscrito. Tudo o que se quedava em papel em construção de dizer com
letras articulas era matéria de somenos era matéria de pequenos era matéria de
perdidos. Todos não mais precisavam dizer. Todos não mais precisavam escrever o
que por dentro lhes ia porque agora todos ocupavam essa membrana comum que se
hauriu no unívoco entrelaçar de auras que se engastou na captura da alma
alheia. Esse não-dentro que agora se dava na pretensa harmonia do compartilhar
uníssono com o que não se curva mais ao que curva ao que imprime dígito, as
voltas de linhas vírgulas da ponta do dedo.
Agora
era o perder membrana. Todos a invadir o dentro a conviver com corpos a captar
as almas a capturar os silêncios o oco do eco uivo, o obcluso de cada um.
Luz que
ocupava os cérebros. Filtro que pretendia que os olhares pudessem apreender os
mútuos pelo que nos vai por dentro. Agora era o olhar aquele halo por toda
parte e ter roubado o seu laivo de singularidade. Hagiometria de ventos. Ralo
que subvertia os entres. Raio a desfigurar os entes, a solapar os solos e
varrê-los para o mesquinho elo do nenhum. Circuitos internos a confinar a todos
no lugar comum.
Agora o
mundo era esse contínuo de cérebros cavos. Esse diário contemplar do halo. Esse
nirvana dos que não tinham sombras arestas ramagens, não tinham o fundo das
florestas e dos lagos. Terra dos agarrados, obstinados a não se deixar perder a
não se deixar perder.
Se
quedava silente a olhar as letras, pelo menos as letras, que erigiam grades por
entre as quais se podia esconder. Entremeava-se no camuflar de fios, no perpetuar dos
traços, no rabiscar das rasuras desmesuradas.
Se
pegava ávido a soletrar com os olhos a conjurar o murmúrio a palavra o gutúrio
agoria do instante entoado da úvula convulado na voz na corrente infinita do
permanente dizer.
(Extraído do livro "uns tantos outros".)
Poucos eram os que viam .... e menos ainda os que liam... Acabei relacionando com trabalho, apesar de todo o meu esforço para não fazer isso. Rsrsrs.
ResponderExcluirGostei muito, Mara.
Obrigada.
Beijo
Saramago inventou a terra em que ninguém via. Você criou a terra em que ninguém lia. Pior cego é aquele que não lê?
ResponderExcluirpunhal singelo às vésperas da garganta alheia/me incendeia qualquer prosa/qualquer ponto/qualquer tema/tudo o que elevo à categoria de poema
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