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quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

os que viram



Vamos falar do minuto, do oculto. Do ultrapassar do ubíquo e de toda a memória. Vamos falar do vulto do que se apreende no ventre e se faz com outros meios que não se prendem só com a pinça dos dedos. Vamos falar da mágica do escuro, do além-muro do que atravessa e vara a equívoca percepção.
Esta é a história:
Rompantes de carros, buzinas perpétuas, os vizinhos a martelar dentro e em todas as paredes. Estavam todos na sala. Os olhares viam as imagens da televisão se movendo ao sabor dos anúncios. Eles eram aqueles alguns a mais na população dos que se deixam viver nos intervalos de tempo. Não ponderavam o que sentiam, não averiguavam o tanto que eram ou o menos. Muitos estavam sentados nos sofás e tudo que passava ficava por meio deles pequeno.
Isso foi num dia, numa noite, num claro entrecortar e se deu quando neles começava o inconfessável conceber despencar da inabalável iminência. Você voltava da cozinha, eu disparava a tecla que acionava as imagens sem que fosse necessário testemunhá-las todas. O que não se mostrava de repente se instaurou porque naquele lapso percebemos que víamos. Era que o perceber aos poucos foi se dando para nosso presente. Instante gravado nos nossos semblantes.
Vivêramos desde sempre ali, naquela sala daquele apartamento. Você que voltava da cozinha e eu com o aparelho de controle remoto. E aquilo certeiro que se instaurou ali que se fez irrevogavelmente. Aquele u que nunca tínhamos percebido. E de repente foi uma cachoeira que se fez dentro de nossos todos sentidos. E o mais que não podemos chamar de sentidos também.
Você sentou com a xícara, eu desliguei a tv. E depois foi o ar e o que mais ver e o que mais ver. Senda que prescinde das paredes e de todos os orifícios da nossa percepção. Tudo era a fonte e o estarmos ali foi o que nos fez habitar aquele novo como nunca antes.
Soprava a voz que repetia: ninguém vem para te proteger, que sussurrava: ninguém vem para te prometer, que percutia: ninguém ninguém ninguém mesmo está por trás de você ou de mim. Foi então que vimos. Essa vertigem porém não nos empurrou no previsível abismo. Era porque era uma outra esfera. A percepção era o de menos porque nossos modos agora desconsideravam os antigos meios. E isso foi o que nos veio. Assim nossos olhos na espreita nossos olhos eram o ver nossos olhos olhares eram no vulto do inincapsulável acontecer.
Mas vamos, vamos sim, vamos falar do vulto. Do que se deu para além do que se chama de oculto e que está com outro nome que não esse que se aplica ou se inscreve nesta página traçada letra a letra, nesta folha que se abre neste agora das suas mãos.
Esta é a história:
Era depois do jantar. Depois que tínhamos discutido todos os caminhos a seguir para daquele beco dos últimos dias escapar. Estávamos com os pratos na mão, quando então veio primeiro em você depois em mim depois nas crianças a sensação. Era como um intenso sorriso algo de alma sem aviso o frescor límpido que só se experimenta ao viver. Era de um vigor sem esforço. Como uma janela que abre suas folhas de par em par. Carne calor cachoeira sem que nada tenhamos feito estávamos tendo aquela apreensão que alguns esperam a vida inteira poder experimentar. E fomos sem os minutos. Claras criaturas precisas ventos que se passam líquidos fogo que ninguém ninguém ninguém jamais suspeita.
E assim com outros que havia não só as crianças. Cenas provindas de um ovo que em todos habita e que ninguém aventa: inaugurar do novo o novíssimo sementes que não se limitam que se abrem que se ensejam no descomensurável no inconcluso e no arremesso.
Era de tudo e de um sorriso e de uma clareza intensa de que naquilo que se hauriu foi o eterno que se hauriu em todos os infinitos corredores. Luzes e os reflexos que não escaparam para o depois.
Vamos, vamos sim falar do vulto, do inapreensível, do que sempre pareceu oculto. Mas de um modo que isso se dê de um modo que ninguém ninguém ninguém nunca mais deixe de ver. Vamos falar do que não se cogita ainda que ainda de todo modo errante.
(extraído do livro uns tantos outros.)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

colmatado



Converter o nada em quê? Lata vazia. Parede de lata. Eco de lata. Silêncio de lata. De tábua. De tubo compressor. Silêncio estirado. Silêncio extintor. Silêncio colmado. Silêncio clangor. Silêncio consumado. Silêncio extintor. Nada. Extrair do pedaço de lata que se acomoda como abraço no peito. Que circunda o que é do corpo e o que também no corpo habita mas que não se acha como corpo no corpo.
Nada há que fazer. A folha grossa de alumínio transmutou-se em mucosa. Pele dos órgãos. Clangor de órgãos congelados definidos colmatados sobrepostos erigidos. Colmar das camadas do ventre do pulmão. Organizar de colméias por nenhum espaço livre.
Converter o nada em quê? No exercício extenso de arrancar do corpo essa colméia feita película de lata que ecoa o oco e que não encontra nada. Só o eco. Soa eco. Soa o oco. Do sacudir da superfície folha de lata.
(extraído do livro onde houver vida a vida haverá de vingar.)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

na nave



Espaço de matéria vaga. Nem comando ou capitão nem piloto governava a nave. Ele tinha acordado ali depois de quanto tempo? Não podia ver. Só via que a nave vagava pelo espaço a nave não navegava. Não navegava a nave só vagava. E ele ali de outro século. De outro dia. Olhava para tudo e via que não podia mexer em comando algum para ir a lugar nenhum porque ali não havia nada que para ele se parecesse com um comando. Quase não podia respirar de tanta solidão e medo que sentiu quando viu que estava ali a navegar na nave que não navegava na verdade só vagava. Olhava e olhava e olhava e olhava a procura de um comando em busca do capitão. Nada. Nem um só botão. Nem uma só alavanca. Nada que se parecesse com um timão ou com um painel ou com coisa alguma. Tudo ali era parecido com nada que se parecesse com algo que ele conhecesse. Ficou ali de pescoço e corpo virando procurando. Não tinha passos porque parado só podia naquele tudo o que sentia só podia olhar e olhar e olhar a procura de um simples instrumento. Não havia naquela nave nada que se parecesse com uma possibilidade de governo de controle para a navegação pensou ali nada naquela nave que o fizesse poder parar de vagar. Sentiu que seus pés não pisavam em chão. Não tinha nada ali onde se segurar. Depois que sentiu isso foi de vertigem em vertigem pensando que seu corpo caía mas não caía. Nem voava. Seu corpo o mais próximo que fazia era dizer que vagava.
Quem era tanto de dizer-se ali. Incomensuras. Inconjeturas. Não podia averiguar nada. Vagava na nave que vagava por sua vez no espaço. De que tempo? Em que medida? Ele queria se lembrar num esforço como fora parar ali mas o que só podia naquela vaga era se dar conta de que nenhum comando dominava. Depois começou a ver a chegar construir que de onde lhe vinha que aquilo era de fato uma nave? Só por ver o espaço e o ao redor de estrelas e galáxias? Só por ver que ali havia um quaquilhão de intercambiáveis astros esferas que em elipses se faziam? Passavam-lhe por sobre os olhos às revolutas infinitas bolas dos mais dimensionados tamanhos. Era ver como havia um modo de ver sem chegar a perceber o governo ou o sentido do que via. Era dentro de uma nave, isso ele concluiu que só podia. Mas era aquilo em que lugar houve espaço para se dar esse acontecer? E por que só ele vivia aquilo de estar vagando dentro sem saber direito do quê? Ele não se lembrava de nada. Ele não se lembrava de coisa alguma. Ele só fazia era estar olhos e rodopios de viver aquilo de tantas esferas das mais esquisitas eras a lhe rondar circunscrito. E era dizer que ele via ao mesmo tempo que sentia lhe penetrar por dentro as membranas daquilo que chamou planetas daquilo que chamou esferas daquele circuito que para ele descreviam elipses. Era de ver como nele as bolas todas em todas tamanhas se imiscuíam e lhe faziam mais que cócegas lhe davam a completa plenitude impressão de ser tudo aquilo de estar dentro de ser dentro e aquilo. Era uma circunvisão infradifusa corpo celeste qual o quê? corpo matéria esgrima de todos os contatos com muito mais do que mais via vivia experimentava pensava ou sentia.
(extraído do livro um mundo outro mundo.)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

laivos de lisos - sintonizar as fibras e voar


laivos de lisos por dentro - frequência de ondas



laivos de lisos - frequência do plano


acordada



Estava invariavelmente acordada, ainda, sem passar pelo instante intermediário entre o sono e a vigília quando era assaltada pela imagem da morte. O despencar de um prédio, o rolar pela escada, o momento final que nos acercará a todos, seja onde for que estivermos, era-lhe muito íntimo. Na verdade, só não era mais porque não suportava deixar que ele lhe tomasse inteiramente os sentidos. De um pulo sentava-se na cama para afastar a imagem diante de seus olhos. Via, sentia na carne, o momento extremo em que a respiração cessa. A veia seca. A agonia do instante em que se dá o final dos dias.
Isso não lhe parecia ser uma premonição. Não vislumbrava pessoas. Não via ninguém. Só sentia em si o aproximar-se da morte.
Essa era sua senda. Caminho por onde ia sem lhe poderem escapar os sentidos. Seu premonir-se era saber na carne o que passa por ela no instante preciso. Vislumbrava as agonias, encarnava-as. Disso não se podia furtar. Assim vivia. Cada noite ao deitar-se não sabia se o sentimento ia-lhe assomar. Não se podia furtar, quando a acometia. E a seqüência era um esforço abrupto de se livrar daquilo.
Depois, pensava no humano. No caco de pouco que somos. No grão de pólvora de pólen de areia pelo ar. Era isso o de que ela não conseguia escapar. A dimensão diminuta que podia sentir nos ápices de sua pele. Sentava-se na cama. Quase sempre acendia a luz. Às vezes tinha mesmo de ir até a janela da sala. Olhava a madrugada quieta. A esquina e a curva da calçada descrevendo a quina. Olhava para os postes de luz, para o céu. Às vezes abria o vidro e ficava procurando estrelas. Mas por mais quieto que parecesse a um observador esse era ainda um gesto sobressaltado.
No fundo nunca tivera coragem de permanecer deitada. Uma noite havia tentado, mas o sentimento aumentou de tal forma o peso do ar que se sentiu entaipada. Enterrada viva. Daí o salto sentada. O sentimento a acordava. O sobressalto era resultante do escoar do sentimento no tempo. Do deixá-lo tomar o corpo, chegar ao pensamento. O sentimento. Um sentimento silêncio. Instante contido todo no corpo. No cerne de sua carne, sob a pele, subcutâneo aquietar dos movimentos todos do corpo. Era um pairar. Sobrepairar. Então vinha o peso. O sentimento cárneo que a compelia. Pensava, muitas vezes, em poder parar nesse instante físico. Mas tudo era num átimo. Vinha o gesto da paralisia final. O congelar das vistas. O corpo tornado pedra. Instante em que o instante cessa.
Certa noite, foi acometida de um modo diferente. Essa experiência ela guardara. Mas contar para quem? Quem poderia sentir próximo o que dela se aproximara? Dessa vez fora diferente. Seu corpo estava deitado de costas na cama. Isso pôde ver mais do que sentir. Ela sabia-se deitada porque se via de fora. Por trás. Por baixo, além do colchão. Sentia-se um instante para fora, de modo a ver-se deitada de costas. Pelas costas. Via com clareza sua nuca, seus cabelos, seu pescoço. Via seu corpo deitando e deitando sobre inúmeros colchões ou sobre o chão ou sobre a terra ou sobre o mato ou sobre a maca ali do hospital. Sentimento vivo da agonia. Aos poucos se foi dando conta de que estava testemunhando muitos morreres havidos. Pareciam-lhe seus. Parecia-lhe ser ela mesma morrendo muitas inúmeras diversas incontáveis vezes. Muitas mortes como se os corpos que morriam penetrassem o seu corpo ali deitado na cama. Muitas mortes como fotogramas passados a espaços esparsos sobre a tela. Como se houvesse um intervalo entre um fotograma ou uma seqüência de fotogramas e outra. E no entanto sentia esses instantes na instância do corpo. Via-se e ao seu corpo ao mesmo tempo que sentia como que o seu corpo deitar-se deixar-se jazer sobre o seu corpo. Era uma forma de ver de inúmeros lados. Ver e sentir. De dentro, de fora, do fora, do ausente, de baixo, de cima, de muitos ângulos via, melhor, sentia suas inúmeras mortes. Isso de saber-se morta muitas vezes era um além de si mesma no agora de todos os dias. Agora queria experimentar o mais que havia por trás dessas inúmeras mortes. O mais de sentir como a morte é. Continuava contudo sendo acometida pelos instantes da agonia final. Tempos. Diferença pequena de tempos que produziam diversos sentires. O cessar da respiração e a consciência física do corpo sem vida. Vento que se aproxima. Hora suprema. O medo da morte, o medo da extrema.
Como viver descrito esse medo imenso? Escrever da treva. Escrever cravado na ponta da caneta, na ponta do dedo sobre a tecla. Escrever tremido, traçado, curtos enlaces de letras que se enovelam teimosos em querer viver da trama cerzida da agora morte expressa pela expressão premida. Escrever à pressa, ligeira mão não contida pelo arestar dos nervos. Escrever aos borbotões de medo. Escrever dos medos. Olhar no olho da agonia e ver aqui fincado em mim o momento extremo. O medo da angústia do momento. A cara feita em máscara mortuária. A cara arrebatada do último gole de saliva. A baba escorrida pelo lábio cinza. O olhar tornado vidro. Arrancar das massas do ventre, do cerne da carne. 

(extraído do livro uns tantos outros.)