Estava
invariavelmente acordada, ainda, sem passar pelo instante intermediário entre o
sono e a vigília quando era assaltada pela imagem da morte. O despencar de um
prédio, o rolar pela escada, o momento final que nos acercará a todos, seja
onde for que estivermos, era-lhe muito íntimo. Na verdade, só não era mais
porque não suportava deixar que ele lhe tomasse inteiramente os sentidos. De um
pulo sentava-se na cama para afastar a imagem diante de seus olhos. Via, sentia
na carne, o momento extremo em que a respiração cessa. A veia seca. A agonia do
instante em que se dá o final dos dias.
Isso
não lhe parecia ser uma premonição. Não vislumbrava pessoas. Não via ninguém.
Só sentia em si o aproximar-se da morte.
Essa
era sua senda. Caminho por onde ia sem lhe poderem escapar os sentidos. Seu
premonir-se era saber na carne o que passa por ela no instante preciso.
Vislumbrava as agonias, encarnava-as. Disso não se podia furtar. Assim vivia.
Cada noite ao deitar-se não sabia se o sentimento ia-lhe assomar. Não se podia
furtar, quando a acometia. E a seqüência era um esforço abrupto de se livrar
daquilo.
Depois,
pensava no humano. No caco de pouco que somos. No grão de pólvora de pólen de
areia pelo ar. Era isso o de que ela não conseguia escapar. A dimensão diminuta
que podia sentir nos ápices de sua pele. Sentava-se na cama. Quase sempre
acendia a luz. Às vezes tinha mesmo de ir até a janela da sala. Olhava a
madrugada quieta. A esquina e a curva da calçada descrevendo a quina. Olhava
para os postes de luz, para o céu. Às vezes abria o vidro e ficava procurando
estrelas. Mas por mais quieto que parecesse a um observador esse era ainda um
gesto sobressaltado.
No
fundo nunca tivera coragem de permanecer deitada. Uma noite havia tentado, mas
o sentimento aumentou de tal forma o peso do ar que se sentiu entaipada.
Enterrada viva. Daí o salto sentada. O sentimento a acordava. O sobressalto era
resultante do escoar do sentimento no tempo. Do deixá-lo tomar o corpo, chegar
ao pensamento. O sentimento. Um sentimento silêncio. Instante contido todo no
corpo. No cerne de sua carne, sob a pele, subcutâneo aquietar dos movimentos
todos do corpo. Era um pairar. Sobrepairar. Então vinha o peso. O sentimento
cárneo que a compelia. Pensava, muitas vezes, em poder parar nesse instante
físico. Mas tudo era num átimo. Vinha o gesto da paralisia final. O congelar
das vistas. O corpo tornado pedra. Instante em que o instante cessa.
Certa
noite, foi acometida de um modo diferente. Essa experiência ela guardara. Mas
contar para quem? Quem poderia sentir próximo o que dela se aproximara? Dessa
vez fora diferente. Seu corpo estava deitado de costas na cama. Isso pôde ver
mais do que sentir. Ela sabia-se deitada porque se via de fora. Por trás. Por
baixo, além do colchão. Sentia-se um instante para fora, de modo a ver-se
deitada de costas. Pelas costas. Via com clareza sua nuca, seus cabelos, seu
pescoço. Via seu corpo deitando e deitando sobre inúmeros colchões ou sobre o
chão ou sobre a terra ou sobre o mato ou sobre a maca ali do hospital.
Sentimento vivo da agonia. Aos poucos se foi dando conta de que estava
testemunhando muitos morreres havidos. Pareciam-lhe seus. Parecia-lhe ser ela
mesma morrendo muitas inúmeras diversas incontáveis vezes. Muitas mortes como
se os corpos que morriam penetrassem o seu corpo ali deitado na cama. Muitas
mortes como fotogramas passados a espaços esparsos sobre a tela. Como se
houvesse um intervalo entre um fotograma ou uma seqüência de fotogramas e
outra. E no entanto sentia esses instantes na instância do corpo. Via-se e ao
seu corpo ao mesmo tempo que sentia como que o seu corpo deitar-se deixar-se
jazer sobre o seu corpo. Era uma forma de ver de inúmeros lados. Ver e sentir.
De dentro, de fora, do fora, do ausente, de baixo, de cima, de muitos ângulos
via, melhor, sentia suas inúmeras mortes. Isso de saber-se morta muitas vezes
era um além de si mesma no agora de todos os dias. Agora queria experimentar o
mais que havia por trás dessas inúmeras mortes. O mais de sentir como a morte
é. Continuava contudo sendo acometida pelos instantes da agonia final. Tempos.
Diferença pequena de tempos que produziam diversos sentires. O cessar da
respiração e a consciência física do corpo sem vida. Vento que se aproxima.
Hora suprema. O medo da morte, o medo da extrema.
Como
viver descrito esse medo imenso? Escrever da treva. Escrever cravado na ponta
da caneta, na ponta do dedo sobre a tecla. Escrever tremido, traçado, curtos
enlaces de letras que se enovelam teimosos em querer viver da trama cerzida da
agora morte expressa pela expressão premida. Escrever à pressa, ligeira mão não
contida pelo arestar dos nervos. Escrever aos borbotões de medo. Escrever dos
medos. Olhar no olho da agonia e ver aqui fincado em mim o momento extremo. O
medo da angústia do momento. A cara feita em máscara mortuária. A cara
arrebatada do último gole de saliva. A baba escorrida pelo lábio cinza. O olhar
tornado vidro. Arrancar das massas do ventre, do cerne da carne.
(extraído do livro uns tantos outros.)
Sou fã do seu texto!!!
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