Aquele amanhecer oblongo
que me trouxe D. ainda se impõe à minha memória.
Depois do café, descendo
as escadas que dão para o jardim da frente, vi um carro bem velho se
aproximando. Era somente o leiteiro. Por trás do carro, porém, após sua
partida, vi aproximar-se caminhando uma figura quase nada discernível no que
diz respeito a estar no mundo. Naquele momento lembro-me de que pensei ser
aquela uma forma muito vaga de ser, que parecia caminhar entre as pregas do
ar... Nem com toda a nitidez do sol da manhã pude discernir qualquer traço
daquele corpo que caminhava. Trazia um alforje à mão esquerda, a direita em
diagonal equilibrava o corpo; era físico e material, portanto. Como, então, se
interpunha no observador a sensação de estar vendo apenas por uma fresta? E era
amplo o campo de visão. A porta estava aberta e, mesmo que não estivesse, é
certo, disso me lembro, eu estava fora, na escada. Ademais, tinha visto
nitidamente o carro do leiteiro aproximar-se e ir-se.
Não, não se tratava de
uma alucinação em delírio. Era um fenômeno comum aos olhos da minha gata, que
estava ao meu lado, comum aos olhos do jardineiro. Cito os dois como
testemunhas da normalidade, porque se eles pararam para olhar o caminhante era
porque ele ali estava, inteiro. Mas como não conversei com o jardineiro sobre
esse detalhe, e com minha gata... bem, imagino que para eles aquilo tenha sido
um aproximar comum de um ser humano.
Mais tarde pude entender
que se tratava mesmo de um ser humano. Era D. E embora isso hoje baste para
mim, sei que para qualquer um que queira compreender não é suficiente. Recorro
então a novas explicações. Não, não, não se tratava de nenhuma mágica, e o fato
de não escrever seu nome inteiro é explicável: não conheci seu nome inteiro.
Conheci apenas inteira a minha parte. E, bem, com alívio declaro isso, porque
não gostaria de ver por um minuto sequer a completude daquela alma,
compartilhar seus sentimentos por inteiro: nada mais complexo, assustador e
infinito, tanto que me deu inteira a mim mesma.
Era quase um sonho,
agora posso ver. Entretanto é óbvio que direi que foi real, todos dizem.
Incomoda-me, porém, essa coisa de eu não ter conseguido ver direito o que ele
era: sei mirar! Nos meses que passamos lado a lado mirei-o muitas vezes, mas
pude apenas entrevê-lo, uma fagulha. Quando se me apresentava obstruía-me a
visão. Aquele que ilumina torna às vezes obscuro o objeto iluminado, cria
sombras.
Não se tratou de nenhuma
experiência paranormal, esotérica, ou qualquer dessas coisas que seja. Não era
um anjo. Nem uma assombração. Nem tampouco, porém, e por isso, posso descrever
o que era, se quiser ser fiel.
Aproximava-se lentamente
e carregando bagagem.
Até que chegou.
Seu rosto trazia o cenho
franzido daquele sol da manhã. As sobrancelhas: era tudo o que é possível
descrever. Havia os ombros, também, que ficaram à altura de minha cintura, quando
parou três degraus abaixo de onde eu estava. Ombros horizontais e cobertos pelo
casaco de couro. Disse qualquer palavra a modo de cumprimento e sorriu, um
sorriso claro de dentes brancos, eu pude ver.
-- Então, você me
convida para entrar e tomar um copo de água? -- perguntou.
Ouvi a tesoura do
jardineiro cair em ponta para o chão, e foi assim também comigo. Só que o chão
em mim era eu. Não sei ao certo o que expirei, sei que foi sôfrego, misto de
surpresa e calma o som que saiu. Fiz com o corpo o gesto de assentimento, e
creio que naquele mover de ar que descreveram meus ombros, ao dar a meia-volta,
eles sorriram. Dando-lhe as costas confirmei o convite.
Subi os degraus,
procurando ouvir seus passos atrás de mim. Não houve nenhum instante de
silêncio, naquele assentir mútuo e mudo. Quer dizer, os degraus foram galgados
por duas figuras esguias. Ou, melhor, três; porque a gata, num movimento
flexível, peculiar aos gatos, colocou-se conosco a caminho. Não garanto que ela
não estava boquiaberta, como estava o jardineiro, porque a vi de costas. Ao
vê-la de costas, como eu fizera antes, imaginei que ela também dissera sim.
A mesa do café estava
ainda posta, e eu coloquei água em meu copo enquanto a cadeira recebia a
visita. Dei-o, e a mão de D. recebeu-o, sem que se possa dizer nada mais sobre
esse gesto, que, contudo, gravou-se em mim, mesmo que cru, como o descrevo.
Após beber a água ele disse seu nome ou a inicial que o abrevia:
-- D.
-- Foi tudo o que
perguntei?
Sua cabeça assinalou que
sim. Plesmente isso.
Não me satisfiz, porém.
Mas as perguntas vinham e se tornavam desnecessárias ao emborcarem em meu
espírito. Sua presença, apesar de entrevê-la, apenas, preenchia tudo. Como o
gás, ou melhor, como o vapor, ou, ainda melhor, como a fumaça. Eu respirava, contudo.
A sensação era mesmo essa de algo que se podia ver expandindo, que entretanto
nada interrompia. Eu ofegava não por sentir-me ocupada, mas, ao contrário, por
sentir-me livre o bastante para também abarcar o ambiente.
Sentei e olhei para
aquilo de estar ali tão infinitamente expandida sem fazer nenhum gesto maior do
que o meu olhar.
E não se suponha, como
eu o faço ao tentar descrevê-lo, que esse D. pudesse ser alguma coisa
traduzível em letras. Ele era, sim, do verbo ser. Eu via porque o toquei, primeiro
por cima de seu casaco de couro e depois por baixo. E havia pêlos, assim como
peito, e os músculos por baixo da carne podiam ser sentidos, embora eu saiba
que isso não quer dizer nada mesmo, para quem já esteja supondo uma presença
etérea. É que eu atrapalho.
Seus olhos em pólvora,
eram por que me inflamo. Daquela união contudo não resultou nenhuma explosão.
Resultou o agitar do fogo em fogo.
Vivemos meses juntos,
comuns. Ao lado um do outro, nossas presenças nos preenchiam nunca o suficiente
para sentirmos falta da solidão. Nenhum solicitava. Porque encontramos maneiras
de nos fazermos ausentes. Se encontramos! E no entanto talvez nunca ele tivesse
de fato estado; afinal eu só conseguia vê-lo por uma fresta. E mesmo isso era o
sentido pleno que me englobava aqui por dentro.
O quão amplo pela fresta
de si ele foi, ou, antes, me tomou. Embora tenha sido eu antes de mais nada que
me tomei inteira e abri de mim assim meu seio. E muito oculta eu estava porque
a dor que eu senti foi algo como o ferir o ar com a mão e o ar é frio, pois a
mão sempre esteve em contato com o corpo.
A questão é controversa.
Porque meu corpo ao se sentir tocado foi tomado de uma dor imensa e no entanto
latejou para além da solidão. Eu fui sôfrega, assim, de um jato, e trêmula, mas
este abandonar de contornos não foi apenas orgasmo feito.
E pude, assim, à maneira
de não perceber, derramar-me o quanto havia para expandir-me. Concomitante à
minha sensação, eu o tragava nos momentos dele. Pulsações minhas irrigando cada
partícula, cada orifício meu. Ele entrando, e o que poderia sentir do ele
estava já aqui impregnado de mim. Fugas. Senti-lo era como tê-lo à pele, toque
profundo. Instantâneo dele, que, por sua vez, derramava-se completo, embora o
que eu via -- não o que eu sentia -- via apenas por uma fresta. Era como, era
inteiro a pedaços em fios que me jorravam dele. E quando eu parava para olhar e
ver eu via a distância, porque inundada também de uma euforia e de um medo a
medo de deparar o infinito. Cada fibra dele tocava-me e as minhas as dele,
assim tão mútuo que fica só uma fagulha aqui no texto.
Mas estarei mentindo se
disser que não o via. Quando ele estava completamente só e eu o olhava na
membrana da memória, minha retina era a divisória daquele tanto que eu o via.
Era quando havia mais silêncio, quase ausência de marulho do sangue. Era quando
nem havia desejo, nem projeto de mim, nem querer vê-lo, sôfrega. E seu estar
sentado quieto, alheio, cabelos nas têmporas, pálpebras e penugens e casaco de
couro ou somente em pêlo. Quando unicamente respirando ele parecia estar. Eu o
flagrava ali, e como era quanto mais ele eu o via. Seu estar no mundo me
alegrava. Com o tempo consegui guardar a ânsia que me fazia em atropelo. Assim
eu retornava-me ou saía de perto.
Houve o dia. Como com
todos há. Quando parei de querer vê-lo e finalmente só o via. Quando estávamos
repletos da aventura de compartilhar. Havíamos aprendido um do outro o isto que
nos éramos. Houve, enfim, o dia de nos perguntarmos se era possível alma una.
Então nos partimos e não encontramos mais sentido em sermos juntos. Foi isso o
nosso absoluto. Foi o erro. Tão leve e risível a ponto de abalar o que éramos.
A ponte em jato que o fez partir, e que me fez partir, pequenos.
Agora, aqui, eu o
contemplo, o casaco em couro ou em pêlo, completamente juntos, pois encontramos
um meio de reparar o erro. Eu o falo, ele sorri, eu o mostro, ele me dá, eu o
dou, ele me aponta e nenhum nos preocupamos em mostrar ou saber por que vemos
ou conhecemos a fagulhas. Em partículas, lamininhas sempre cortando mais um
pedaço da película que nos separa do infinito de cada um e de tudo. Talvez tão
simples, que quem nos vê vê os dois juntos vivendo a vida, mas vê apenas por
uma fresta.
(extraído do livro babel, é claro; publicado em 2002.)
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