Powered By Blogger

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

D.



Aquele amanhecer oblongo que me trouxe D. ainda se impõe à minha memória.
Depois do café, descendo as escadas que dão para o jardim da frente, vi um carro bem velho se aproximando. Era somente o leiteiro. Por trás do carro, porém, após sua partida, vi aproximar-se caminhando uma figura quase nada discernível no que diz respeito a estar no mundo. Naquele momento lembro-me de que pensei ser aquela uma forma muito vaga de ser, que parecia caminhar entre as pregas do ar... Nem com toda a nitidez do sol da manhã pude discernir qualquer traço daquele corpo que caminhava. Trazia um alforje à mão esquerda, a direita em diagonal equilibrava o corpo; era físico e material, portanto. Como, então, se interpunha no observador a sensação de estar vendo apenas por uma fresta? E era amplo o campo de visão. A porta estava aberta e, mesmo que não estivesse, é certo, disso me lembro, eu estava fora, na escada. Ademais, tinha visto nitidamente o carro do leiteiro aproximar-se e ir-se.
Não, não se tratava de uma alucinação em delírio. Era um fenômeno comum aos olhos da minha gata, que estava ao meu lado, comum aos olhos do jardineiro. Cito os dois como testemunhas da normalidade, porque se eles pararam para olhar o caminhante era porque ele ali estava, inteiro. Mas como não conversei com o jardineiro sobre esse detalhe, e com minha gata... bem, imagino que para eles aquilo tenha sido um aproximar comum de um ser humano.
Mais tarde pude entender que se tratava mesmo de um ser humano. Era D. E embora isso hoje baste para mim, sei que para qualquer um que queira compreender não é suficiente. Recorro então a novas explicações. Não, não, não se tratava de nenhuma mágica, e o fato de não escrever seu nome inteiro é explicável: não conheci seu nome inteiro. Conheci apenas inteira a minha parte. E, bem, com alívio declaro isso, porque não gostaria de ver por um minuto sequer a completude daquela alma, compartilhar seus sentimentos por inteiro: nada mais complexo, assustador e infinito, tanto que me deu inteira a mim mesma.
Era quase um sonho, agora posso ver. Entretanto é óbvio que direi que foi real, todos dizem. Incomoda-me, porém, essa coisa de eu não ter conseguido ver direito o que ele era: sei mirar! Nos meses que passamos lado a lado mirei-o muitas vezes, mas pude apenas entrevê-lo, uma fagulha. Quando se me apresentava obstruía-me a visão. Aquele que ilumina torna às vezes obscuro o objeto iluminado, cria sombras.
Não se tratou de nenhuma experiência paranormal, esotérica, ou qualquer dessas coisas que seja. Não era um anjo. Nem uma assombração. Nem tampouco, porém, e por isso, posso descrever o que era, se quiser ser fiel.
Aproximava-se lentamente e carregando bagagem.
Até que chegou.
Seu rosto trazia o cenho franzido daquele sol da manhã. As sobrancelhas: era tudo o que é possível descrever. Havia os ombros, também, que ficaram à altura de minha cintura, quando parou três degraus abaixo de onde eu estava. Ombros horizontais e cobertos pelo casaco de couro. Disse qualquer palavra a modo de cumprimento e sorriu, um sorriso claro de dentes brancos, eu pude ver.
-- Então, você me convida para entrar e tomar um copo de água? -- perguntou.
Ouvi a tesoura do jardineiro cair em ponta para o chão, e foi assim também comigo. Só que o chão em mim era eu. Não sei ao certo o que expirei, sei que foi sôfrego, misto de surpresa e calma o som que saiu. Fiz com o corpo o gesto de assentimento, e creio que naquele mover de ar que descreveram meus ombros, ao dar a meia-volta, eles sorriram. Dando-lhe as costas confirmei o convite.
Subi os degraus, procurando ouvir seus passos atrás de mim. Não houve nenhum instante de silêncio, naquele assentir mútuo e mudo. Quer dizer, os degraus foram galgados por duas figuras esguias. Ou, melhor, três; porque a gata, num movimento flexível, peculiar aos gatos, colocou-se conosco a caminho. Não garanto que ela não estava boquiaberta, como estava o jardineiro, porque a vi de costas. Ao vê-la de costas, como eu fizera antes, imaginei que ela também dissera sim.
A mesa do café estava ainda posta, e eu coloquei água em meu copo enquanto a cadeira recebia a visita. Dei-o, e a mão de D. recebeu-o, sem que se possa dizer nada mais sobre esse gesto, que, contudo, gravou-se em mim, mesmo que cru, como o descrevo. Após beber a água ele disse seu nome ou a inicial que o abrevia:
-- D.
-- Foi tudo o que perguntei?
Sua cabeça assinalou que sim. Plesmente isso.
Não me satisfiz, porém. Mas as perguntas vinham e se tornavam desnecessárias ao emborcarem em meu espírito. Sua presença, apesar de entrevê-la, apenas, preenchia tudo. Como o gás, ou melhor, como o vapor, ou, ainda melhor, como a fumaça. Eu respirava, contudo. A sensação era mesmo essa de algo que se podia ver expandindo, que entretanto nada interrompia. Eu ofegava não por sentir-me ocupada, mas, ao contrário, por sentir-me livre o bastante para também abarcar o ambiente.
Sentei e olhei para aquilo de estar ali tão infinitamente expandida sem fazer nenhum gesto maior do que o meu olhar.
E não se suponha, como eu o faço ao tentar descrevê-lo, que esse D. pudesse ser alguma coisa traduzível em letras. Ele era, sim, do verbo ser. Eu via porque o toquei, primeiro por cima de seu casaco de couro e depois por baixo. E havia pêlos, assim como peito, e os músculos por baixo da carne podiam ser sentidos, embora eu saiba que isso não quer dizer nada mesmo, para quem já esteja supondo uma presença etérea. É que eu atrapalho.
Seus olhos em pólvora, eram por que me inflamo. Daquela união contudo não resultou nenhuma explosão. Resultou o agitar do fogo em fogo.
Vivemos meses juntos, comuns. Ao lado um do outro, nossas presenças nos preenchiam nunca o suficiente para sentirmos falta da solidão. Nenhum solicitava. Porque encontramos maneiras de nos fazermos ausentes. Se encontramos! E no entanto talvez nunca ele tivesse de fato estado; afinal eu só conseguia vê-lo por uma fresta. E mesmo isso era o sentido pleno que me englobava aqui por dentro.
O quão amplo pela fresta de si ele foi, ou, antes, me tomou. Embora tenha sido eu antes de mais nada que me tomei inteira e abri de mim assim meu seio. E muito oculta eu estava porque a dor que eu senti foi algo como o ferir o ar com a mão e o ar é frio, pois a mão sempre esteve em contato com o corpo.
A questão é controversa. Porque meu corpo ao se sentir tocado foi tomado de uma dor imensa e no entanto latejou para além da solidão. Eu fui sôfrega, assim, de um jato, e trêmula, mas este abandonar de contornos não foi apenas orgasmo feito.
E pude, assim, à maneira de não perceber, derramar-me o quanto havia para expandir-me. Concomitante à minha sensação, eu o tragava nos momentos dele. Pulsações minhas irrigando cada partícula, cada orifício meu. Ele entrando, e o que poderia sentir do ele estava já aqui impregnado de mim. Fugas. Senti-lo era como tê-lo à pele, toque profundo. Instantâneo dele, que, por sua vez, derramava-se completo, embora o que eu via -- não o que eu sentia -- via apenas por uma fresta. Era como, era inteiro a pedaços em fios que me jorravam dele. E quando eu parava para olhar e ver eu via a distância, porque inundada também de uma euforia e de um medo a medo de deparar o infinito. Cada fibra dele tocava-me e as minhas as dele, assim tão mútuo que fica só uma fagulha aqui no texto.
Mas estarei mentindo se disser que não o via. Quando ele estava completamente só e eu o olhava na membrana da memória, minha retina era a divisória daquele tanto que eu o via. Era quando havia mais silêncio, quase ausência de marulho do sangue. Era quando nem havia desejo, nem projeto de mim, nem querer vê-lo, sôfrega. E seu estar sentado quieto, alheio, cabelos nas têmporas, pálpebras e penugens e casaco de couro ou somente em pêlo. Quando unicamente respirando ele parecia estar. Eu o flagrava ali, e como era quanto mais ele eu o via. Seu estar no mundo me alegrava. Com o tempo consegui guardar a ânsia que me fazia em atropelo. Assim eu retornava-me ou saía de perto.
Houve o dia. Como com todos há. Quando parei de querer vê-lo e finalmente só o via. Quando estávamos repletos da aventura de compartilhar. Havíamos aprendido um do outro o isto que nos éramos. Houve, enfim, o dia de nos perguntarmos se era possível alma una. Então nos partimos e não encontramos mais sentido em sermos juntos. Foi isso o nosso absoluto. Foi o erro. Tão leve e risível a ponto de abalar o que éramos. A ponte em jato que o fez partir, e que me fez partir, pequenos.

Agora, aqui, eu o contemplo, o casaco em couro ou em pêlo, completamente juntos, pois encontramos um meio de reparar o erro. Eu o falo, ele sorri, eu o mostro, ele me dá, eu o dou, ele me aponta e nenhum nos preocupamos em mostrar ou saber por que vemos ou conhecemos a fagulhas. Em partículas, lamininhas sempre cortando mais um pedaço da película que nos separa do infinito de cada um e de tudo. Talvez tão simples, que quem nos vê vê os dois juntos vivendo a vida, mas vê apenas por uma fresta.

(extraído do livro babel, é claro; publicado em 2002.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário