Powered By Blogger

terça-feira, 6 de novembro de 2012

o hexaedro



Cavo daqui do escuro a cavidade clara mais profunda. Vejo no alto da parede algumas fendas que não posso alcançar. Estou há quatro anos aqui. No silêncio. Sou visitada às vezes. Sei às vezes que se trata de uma torre. Penso que se parece com um farol. Mas de onde olha o olho do farol? Porque dessas fendas é a luz que entra e eu vejo passar nas horas noturnas o facho de luz que dobra os objetos com seu claro-escuro de encontro à parede. Aqui tudo é limite e eu não me vejo. Isso é o que me atormenta. Não me vejo. Não há um só objeto que reflita a minha imagem. Tudo é opaco e não transluz. Todavia penso que tudo aqui, após esses anos, já carrega de mim muito mais do que um espelho jamais poderia refletir. Objetos de matéria. Pêndulos. Bolas que se encontram no ar e ao toque impulsionam-se assim. Poderia descrever toda a inveja que sinto ao ver as nuvens e as estrelas... mas não é da inveja que quero falar. É dos cantos. Ângulos retos, figuras que se impõem certas contra minha inconstância de sentidos... Ângulos que não conversam; fazem subterfugir todos os centros. Ângulos cavos impossibilitando o arremesso. E não são quatro. Nas paredes, não sei como, se desenham cantos de 90 graus que não se quadram, de modo que o certo aqui é um desconcerto eterno de nunca diagonais a confluir em número par. Ângulos retos que se impõem ímpares num certo de quina que desvia qualquer caminho. Que se desprende e faz perder-se para sempre aquilo que se poderia querer o começo. Ângulos que jamais apontam para o centro.
Eu me lembro bem das sombras dentro do carro, na estrada à noite. Lembro-me de que não tinha tamanho suficiente para, encostada, poder olhar pelo vidro dianteiro do carro. Olhava, pois, do banco de trás, sentada. As pernas ocupavam todo o assento na transversal e os pés ficavam pendurados para fora. Olhava o seguir de sombras projetadas no encosto do banco dianteiro. Elas passavam... Como ângulos, também me lembro disso. Mas sempre um pouco enviesadas, diagonalmente. E as cabeças dos ocupantes laterais do mesmo banco precipitavam-se numa gangorra de areia cheia areia vazia na ampulheta que marcava espaço mais do que aprisionava o tempo. Eu era criança.
E tudo, agora, é um acontecer de coisas que não se configuram as mesmas, mas que se interpõem às vezes ante meus olhos, como se fossem sempre as sombras projetadas vistas na infância. Mas não é, não é. O que há é um comer correr de horas, mordendo meus dias. Meus todos anos. Que se passam extensos.
Experimento a solidão de mil destinos... Penso no que possa querer dizer isso. Penso no que possa querer dizer disso. Experimento a solidão de mil destinos aqui da torre. Desse quarto ou sala ou vão onde meu corpo vaga procurando as fendas que deixam passar a luz do sol. Experimento em mim, e isso não é pretensão, a solidão de mil destinos ao experimentar em mim ao avesso a solidão extrema de estar aqui no meio de um quarto uma sala ou um vão. Qualquer vão por onde passam as luzes. Faróis silenciosos da luz do dia que não entra de frente de chofre de cara. Entra pelas frestas escapadas das fendas que alguém fez aqui no alto desta torre de quimera, onde era mesmo que eu viria claro, claro, dar.
O piso, os tapetes que piso. As pequenas dobras dos tapetes que se fazem porque piso muitas vezes. Passo muitas vezes trilhando sempre esse mesmo piso. As paredes opacas. O que posso ver de mim são somente laivos de sombra que se projetam pelas paredes de inúmeros cantos que elidem toda e qualquer diagonal e toda e qualquer possibilidade de vislumbrar algo que chegue à borda da minha superfície. De modo que só vejo que existo porque projeto sombra. Porém não vejo suficiente minha sombra a ponto de concebê-la além de um simples obstáculo da luz. Restou-me o gesto de alisar meu corpo para senti-lo. Olhar de cima para o meu ventre, para as minhas coxas, para os meus pêlos. Mas o rosto, o rosto, esse não consigo ver. Procurei projetar a sombra de um perfil, mas nem de nariz, a não ser o que intuí um lado de um triângulo, pude ver a forma.
Sou humana, isso sei. Convenho porém que meu passado esqueci quase que completamente. Tenho lembranças de caminhos, lembranças de contatos e de falas e de risos e de algumas dores. Mas elas se misturam umas às outras de modo tal que já não sei mais se o que era riso era alegria ou conquista ou sarcasmo porque o de que me consigo lembrar permanece apenas a imagem que se engaja em outra que no entanto sempre fica na superfície plana e eu a vendo. De modo que se hoje sou cilíndrica é uma experiência a contrapelo. Porque não vejo o que projeto, só o que fundo: presença de ocupar esse quarto ou sala ou vão dessa torre e respirar por dentro.
Experimento mil destinos pelo vão de dentro e por fora é um passar de mão e o vento. Sentimento de todas as luzes que se acendem e se apagam aqui no que me percebo dentro. Essas imagens. Essa desse passado infância no banco do carro acompanhando as sombras a subir e a descer pelo encosto. Película que só captura as linhas das imagens planas que se imprimem dentro. Dentro. E um pulsar de formas o que me preenche as mãos e a planta dos pés e a pele do corpo a fazer contato com o que a mais ocupa esse quarto ou sala esse vácuo vão que me deixa passar pelo ar e por entre os outros corpos que o ocupam.
Experimentar a forma seria um recomeço. Estar no gelo. Dentro de um cubo de vazio, dentro de um menos. E o silêncio que se não diz, o silêncio que se não pensa, o silêncio que se não presencia é impossível de compartilhar no gelo. Este estado de menos. Que fende faculta coa, que imprime comprime esbarra na esguelha do vão do interposto; o que somenos, soluço, tropeço, caroço. E esse é só o cerne. Essa é mais uma forma de estar no deserto, no deserto, no deserto do onde foi mesmo que eu vim parar agora que caí do outro lado do avesso.
Não quero transpassar nada, voltar nada, reconhecer nada. Ainda que não veja minha forma projetada, e isso me enlouqueça, é preciso que assim eu vivencie a fundo essa experiência. Ser o agora do nada. Ser o vazio eco oco escuro do não parido. O incriado que não se expressa porque não há inda forma em que se expresse. O inexperimentado porque não atuado, ainda que completamente aqui.
E não há como sair da torre, mesmo assim. Com todo esse augúrio a torre ainda é cilindro e forma que se interpõe. Gesto de gerar sem fim ou caminho. Gesto de corda tremida trepidada, mas ainda gesto ainda corda ainda trepidada e/ou tremida.
Zero-me a nenhuma palavra.
(extraído do livro uns tantos outros.)

Um comentário:

  1. você tem o dom maravilhoso de ver e descrever, sentir o NADA, de uma maneira incrível que nós, meros nadas, jamais conseguiremos.e angustía porque é real e presente no fundo dos corações.
    mexeu muito comigo.

    vera

    ResponderExcluir