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sexta-feira, 30 de março de 2012

ele estava lá

Estava ali, quieto. Já tinha escrito a 9ª. Não esperava audir mais nada. Nem esperava escrever coisa mais nenhuma, também. Estava lá: impávido. Não parecia esperar, se é que me entendem. Nada podia mais querer, se é que me acompanham. Nada precisava mais fazer. No entanto continuava lá impassível, como quem já consegue estar sem que isso seja visível. Respirava ar. Respirava mesmo. Comer já não se sabe se comia. Mas sentado ali. Mãos postas no colo. Continuava ali. Como quem não aguarda mais nenhum intercurso. Como quem já não se importa com nenhum imprevisto. Como quem sequer se dá conta de que louvam seus feitos e de que o celebram por toda Terra inteira. Estava lá como quem não tenha chegado como quem nada deseja como quem já tenha alcançado sabe-se lá o que quer que seja.

(extraído do livro onde houver vida a vida haverá de vingar.)

quarta-feira, 21 de março de 2012

o que já está ali

     Antes do átomo. Antes do ato. Gesto de rur. Cor ver. Cor ver? Cavar. Onde encontrar o além da partícula. Parcela pedaço o que vara a vida toda a matéria o pensamento o que cava vibra o que não se pega mas que não deixa de se sentir com um senso que não é só o do tato o do sangue. Som de sub-clave, seja lá que sentido isso tenha para o músico. Som antes do som cor antes da cor corpo antes do corpo ver antes do olho pensar roubar sub-ser.
     Não há como não contar isto que sobrevém. Não há como evitar isto que sub-vem. Não há como aplacar isto. Sem esquecer que este texto é o do rabisco. O do com que se monta umas pinceladas de história que, se dita, crida, erigida, se torna cada vez mais distante da matéria que se aporta que se aborda. Diz para além do muito confuso algo como a fronteira do indiviso.
   Saí da padaria com dois pacotes diferentes de pão. Carregava o leite e o queijo fresco na outra mão. Como sempre os passos mediam a calçada até chegar à esquina. Parar estacar ouvir o marulho violento dos carros. Deixar essa onda passar atravessar. Como sempre o momento de abrir a porta. Os pacotes úmidos passados para a mão que carrega os sacos secos. Como não molhar o pão fresco e quente com o gelado do leite? Era só um instante mas o meu afligir da contaminação do úmido me tomava o momento. Cãibra dos dedos, nó dos tendões e a porta que não se abre com um simples movimento. Isso de toda em toda as tardes em que passava na padaria. Rodava a chave separava os pacotes. Entrava em casa deitava-os na pia. Pouca miséria que assume um ar de tragédia ao reencontrar aquele que procura o pão seco o não contaminado pão quente chegado da padaria.
     O que tirar ou deixar de ver ou passar a ver neste preciso estado de escrever. O que matéria ponto por ponto se diz se deita se deixa de dizer.
      Carregava um ar de tragédia ao reencontrar o contaminado.
      Não.
     Parar ouvir o marulho violento dos carros. Deixar essa onda passar atravessar. Abrir a porta. Um instante dos tendões e a porta que se abre com um simples movimento. Toda em toda. As tardes que passava. Rodava a chave. Pouca miséria daquele que procura o pão seco o pão quente o queijo e o leite chegados da padaria.
      O que parar para ouvir.  
     Os passos que sentiam a calçada até chegar à esquina. O marulho o violento dos carros. Essa onda atravessar. O momento de abrir. Um instante de toda em toda as tardes. Passar.
(extraído do livro um mundo outro mundo)

terça-feira, 6 de março de 2012

antipresságio


Eu poderia chamá-los Mateus ou Marina ou Thiago. Eu poderia chamá-los Virgínia ou Juliana ou Marcelo. Ou poderia inventar-lhes nomes mais diferentes e raros, como Salena, Açucena, Naviagante. Ou encontrar outra forma de dizer que eles brotaram, brotaram, naquela manhã da colcha de vapor que costuma envolver a Terra ao alvorecer. Brotaram e não se sabe bem de onde e muito menos como foi que eles vieram, porque vieram juntos no instante que foi o mesmo nos mais díspares lugares do planeta, hoje se pressupõe saber. Vieram diferentes de Cristo ou Buda ou Maomé ou Moisés, mas levados e trazidos por um ímpeto que depois se comparou ao deles, os que ficaram. Vieram obstinados, muito antes de predestinados. Vieram imediatamente imantados, imiscuídos, implantados na malha daquilo que se chama a vida. Trouxeram o sulco do nenhum caminho anteriormente trilhado. Foram brotando naquele cuidado de vir, mantendo-se na vida e com todos os seus enlaces e acasos. Trouxeram o sulco do outro caminho, aquele que se inventa com o pé a cada novo passo dado. Mas alguma coisa havia que eles pareciam saber antes, não só com o pensamento, mas com todas as fibras da pele, com todas as partículas do corpo.
Eles brotaram. E quando brotaram brotavam enquanto faziam de si coisas do vento, de invento. E nenhum veio salvar. Ou amanhecer o que de um se espera. Nenhum veio ensinar. Pelo contrário. Eles vieram pelo não salvamento. Eles faziam a cada passo o lastro do não me caminhe por trás, não me siga. Eles vieram ser nulos e nenhuns para os que os querem nascê-los. Zeros ou ocos ou fendas, o que ainda não vemos. Eles vieram e quando nunca percebemos e quando menos caminhos menoscabavam, mas aqui do outro lado do vir vieram. Isso isso isso é que pelo menos sabemos. E me basta perguntar por entre as letras que enlaço. O por que haveria de ser eu a os parir? Essa descomensurada ânsia do nascimento. Esse desmesurado abrir das patas-mãos a fabricar ungüento. E, me pergunto: por que razão presunça haveria de ser eu a engendrar esses índios novos desse não momento? Momento vertigem. Momento na linha. Engendrá-los com a unha e arrancá-los com os dedos? Eles não foram. Sequer seguiram. Eles sequer existiram. Porque a existência é pouco para aquilo que se cria. Eles. Os ateus imantados dos cabelos ao vento. Não vieram individuados, isso é o que é. Qualquer das juntas que se queira urdir. Qualquer das colchas que se queira deitar. Qualquer dos mantos que se queira plausir; a verdade é pequena diante da vertical tarefa do porvir. E isso é deitar cânulos de sentido. É prenunciar salvação. E o que só posso dizer sobre esses todos meninos idos é que os que não vemos são o que deveras são. Rede dos não trazidos. Ralo dos dedilhados vãos.
Vácuo do agora fui, onde vou cerzir o que ninguém pressente o que ninguém augure o que aqui já veio. Jogo de armar do invento. Dobra do inconcluso, plano que se engendra em avesso. Raspado da víscera vermelha, curva da parede úmida a vagir matéria arrancar do tempo o pressentimento. Vara do vulto a vir. Vagem do abrir abrir.
Eu poderia conjurar meninos e com isso andar para trás. Poderia dizer que aqueles Mateus, Naviagantes, Salenas andam por aí a apaziguar espíritos a entabular o caos. Mas isso não se faz nas urzes. Isso não se faz daqui. Vade retro desejo que a tudo explica que a tudo explana que a tudo abarca. Cacos do que é menos vir. Travo do que é um de costas. E o vento do que eu esperava me bafeja a cara e me escarra o rosto. Mostra o que me sobrepunha. E o de que calo é o se vieram ou se foram esses que um dia plantei nas folhas da expectativa de vir para aplacar o fluxo da imensa vida. Essa que eu desconheço essa que não agora finda.
E o que sei daqueles que hão de ver nascer essa nova esfera é que jamais quiseram ou foram ou completaram o sentido de nenhum presságio. Planos dos anticaminhos. Vórtices para além das vistas. Eles chegaram e agora habitam o cada momento um a um do combinar de células moléculas ígneas engate de goivas engate de angústias grotas de gretas gramas gruivos grunhos gorjear de grous na pretensa solidão do que jamais saberemos (de dentro de nossas galerias indivíduas) que é em cheio a vida alga da vida algaravia a garoar o ar do agora-agora.
(extraído do livro "uns tantos outros".)