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domingo, 17 de outubro de 2010

vinte e cinco horas em Paris

Para ler ao som de Erik Satie
Espremia cada uma das marcas da mão com cuidado, a ver se havia algum suco de sair. Olhava para as unhas detalhadamente, examinando as incrustrações de sujeira, o pó das coisas. Cuidava da aparência. A cada vitrina que passava, olhava de soslaio com os cantos dos olhos para mirar o refletir dos vidros... e constatava contente os andrajos transformados em farrapos, a figura transformando-se em tiras, as passadas, dadas largas, fazerem-se em sombra. Sorrateira, esgueira pela calçada.
Drink.
Um copo de aguardente, dedos negros segurando. Quase graxa dentro as unhas. Bebia o álcool transparente: desinfetava a alma. Ao mesmo tempo, trazia-a mais limpa após o escurecer da pele das mãos, da pele do rosto. A crosta de sujeira e o mau cheiro limpavam todo o oculto oco dos órgãos que borbulhavam agora num gorgorejar de água descendo, castelo de Granada.
Eu era o miserável, a sombra de que têm medo. A sombra que não conversa. Olhos soslaiam a olhar, a olhos ocultos. Olhos de soslaio vidro e farpa. Olhos a olhar o mundo sem as farpas quando sendo só o limpo aqui de dentro. Aguardente.
Quase gota a tecla ao piano
(Extraído do livro Babel, é claro, 2002.)




3 comentários:

  1. Eu sempre sinto que na figura dos mendigos há um "quê" de redenção...
    O texto é lindo, Mara. Tem ritmo mesmo. Nem seria preciso Eric Satie pra acompanhá-lo.

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  2. O que aconteceu com o comentário que eu tinha posto aqui?? :-(

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  3. Muito bm reler esse texto. É lindo...

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