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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

escrevir



Eu não poderia tentar de novo. Como se tudo estivesse em preto e branco. Como se a almofada lisa e branca não estivesse suja. Como se o abajur tivesse lâmpada. Eu não poderia deixar nada escapar. Nem o milagre de ler no escuro nem a ousadia de permanecer ali. Naquela casa vazia. Com medo de ratos. Cheia de baratas. Com pó e migalhas por todo lado. E um relógio de pulso jogado no meio do assoalho. E a luz da cozinha piscando; lâmpada piscando.
Noite e eu ali. A coragem de estar ali lendo no escuro. E tudo era no escuro de facada cortada. Tudo era uma fatia iluminada. Eu estava ali. Ainda nem me dava conta direito de como. Com janelas ao fundo. E a almofada branca de suja a um canto. Eu que tivera a coragem de permanecer ali: lendo e lendo no escuro. Todos foram embora. Minha vida fora embora. Escorrida toda para fora da porta.
Agora ali. Naquela sala vazia com uma almofada suja de branca e o relógio de pulso no piso. Lendo. Tendo a coragem de ler outro tanto. E no escuro. Sem abajur pois a sala estava escura pisca-piscada pela lâmpada da cozinha. Tudo era migalha e pó. E talvez uma ou outra barata passasse por mim. Mas isso eu não via.
Minha vida toda escorrida para fora da porta. Não sobrara nada. Nem a almofada branca nem o abajur sem lâmpada. O relógio de pulso talvez. Mas eu o tinha abandonado sobre o piso. E lendo. E lendo. E o escuro que estava agora que mais nada e ninguém havia. Estava ali no escuro com a coragem de ler um livro. Página aberta. Toda a história que se contava. E eu ali. No meio, sentada no piso. Tudo mais nada de mim ao alcance das mãos. A não ser o relógio de pulso; mas este já estava no piso de um modo que já não fazia mais diferença o que era, para que servia o que marcava.
Ali página aberta de par em par. Todas as letras me abraçavam. Eram as outras camadas camadas finas que me encontraram. No escuro do dia. No sótão. No veio da vida. Sem outro interesse que não estar ali lidas por mim escritas por mim escritas camada a camada. Toda a minha vida escorrida para fora da porta. Eu já não era mais nada. De mim só a fagulha única só nem mesmo o pó e a migalha. E o relógio. Que àquela altura de tudo já não contava.
Eu estava ali. Almofada e abajur e luz ao fusco da cozinha. Toda letra de páginas e páginas escritas percorrida toda camada.
Selvagem é não ser ninguém. É rasgar as folhas. Parar de ouvir. Parar de ver. Parar ali. Selvagem é não ser ninguém com os pés no limbo com todas as folhas. Nem mais um escrito. Nem um pincel. Nada pra ser dito. Nada pra ser visto. Nada pra passar.
Selvagem é pensar pensar. Estar no fio da noite. Sem poder dormir. Tudo em tudo tendo o em que pensar. Selvagem é sentir o mundo. Todo esse mundo e dele não ser mais que seu tumulto. Verbo do sujeito oculto. Vasto como um vulto. Algo que não foca. Ponto que não firma. Borrão do inconcluso do ordinário laço que não se ata. Linha que não se liga.
Selvagem é ver difuso. Raspa de toda fibra que passa por entre as tripas. Selvagem é querer dizer o que sempre haverá de ser o indizível.
Eu não poderia tentar de novo. Como se tudo estivesse em preto e branco. Como se a almofada não estivesse ali lisa ou branca ou não estivesse desde sempre suja. Como se no abajur houvesse lâmpada. Como se das migalhas e do pó da sala eu tivesse aviso sem ler o que de par em par se abria no escuro escuro de toda página. Eu não poderia estar ali de novo selvagem no chão da sala tripa que vibra o pó das coisas e não se cala.

(extraído do livro "onde houver vida a vida haverá de vingar".)

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