Powered By Blogger

segunda-feira, 21 de maio de 2012

o que habita no fundo dos homens


Na sarjeta. Estava. Há meses. Não conseguia compor. Não conseguia falar. Assistia ao mundo de dentro de si. Assistia. Só assistia. Os de fora faziam contato feito visitantes de um aquário. Passavam de fora. Dirigiam-lhe umas palavras e ele só via isso e não entendia o que é que podiam querer. Aquela língua não entendia. Nada nos de fora lhe era familiar afora o fato de serem humanos. Afora. Isso, mais nada. Aquele buraco no qual se escondia. Aquela toca em que se via metido. Aquele canto. Escuro. Canto escuro de todos. Aquele silêncio. Aquele oculto em que se metera. Aquele escuro. Aquele aquilo. Um silêncio e um não querer proferir uma palavra sequer. Só rosnar. Babar de quatro no chão. Só virar bicho. Em meio a excrementos. Mijar na sala. Na parede, sem considerar as convenções. Ser à solta. Solto fera animal. Rosnar, grasnar, ricochetear, ranger. Ser a ponta. Bicho desligado do resto do mundo a me supor. Bicho apartado. Comendo gramíneas. Vivendo no estábulo. Eu estou aqui mesmo oculto. No umbigo do migo. Aqui estranho. Quem vem lá? Do lado de fora? Que me reconhece nesse instante agora?
Seus olhos encontram os meus com muita freqüência, no silêncio. Em cheio e não de soslaio, de modo furtivo. Seus olhos me encaram como a indagar-me constantemente quem sou. Essa pergunta algo funda me deixa um tanto desamparada. Preciso de teclas. Meus dedos tremem, você pode ver? Sou na medida em que percebo o que do outro é capaz de me perceber. Eu estava lá e não sei ao certo até que ponto o compreendia. Eu o assistia e recebia com minhas mãos. Queria ver se era possível ele me explicar de onde é que ele vinha. Para onde é que ele fora? O que o impulsionara àquele gesto extremo, o que o levara? Quando tudo é vórtice, voragem, anel. Rodamoinho onde tudo pára e o que quer que sejamos não é capaz de conter. O movimento sem fundo. O ato sem medo de deixar-se escapar pelo ralo. Deixar de ser para fora. Olhar-se dentro, até o avesso, tocar com a planta dos pés, com a ponta do dedo da mão. O que comigo guardei aqui nesses meses foi um rodamoinho bem fundo. O que sei. O de que preciso é sentar-me ao piano. Tocar, tocar, cada uma das teclas ao toque de seu dedo cede, dura, reta, abandonando as vizinhas teclas. As cordas do piano tecladas cedem à imposição de seus dedos. Reconhecia que ali estava inteiro um homem. Constituído de si. Voltado. Um homem acordado como poucos são acordados. Um homem livre. Capaz de sustentar seus sentimentos. Capaz de conter o que sentia e aplicá-lo na ponta dos dedos. Não à pergunta. Eu não poderia agora perguntar-lhe o que lhe ia por dentro. Se ele respondesse era porque iam-lhe idéias, e eu o contemplava ali inteiro entregue aos seus dedos e ao piano. Não à pergunta. Jamais me deixarei conduzir novamente para longe dessas teclas. Era tudo o que eu queria. O que eu queria era supor que houvesse um grau elementar de possibilidade de ele movimentar-se em direção ao seu sustento. Digo como coluna vertebral, como espinha dorsal. Talvez devesse trazê-lo para fora, para a luz. Talvez devesse interpelá-lo. Não precisa de água, não precisa de pão? Não precisa dormir? Dormir é o único movimento que posso fazer para aquém da música. O quanto dormir me ultrapassa? Quero ver o quanto de mim quer essa música antes que eu ceda ao sono. Tocar. Tocar. Tocar. Variar dedos e teclas. Roçar o teclado. Mais que ouvir, tocar como se só tenha dedos para isso. As mãos. Precisas e rápidas passando sobre o teclado. Tocar. Tocar. Piano. Rápido sobre o teclado. Aqui há vãos. Há frestas. Meus olhos encontraram os seus, isso foi o suficiente? Não pensei que fosse. Não pensei que existisse. O quê? O eco! A reverberação dos mil sentidos que pode ter cada um dos gestos. Não há nada aqui que possamos comer. Ele não fala. Ela não diz. Quero ver qual de nós cederá. O que é que nos ultrapassa. O espesso. O fio das teclas a cortar os dedos. As pontas, as palmas. Do pé ao piano aos movimentos lentos. Talvez eu o pudesse compreender. Digo. À sua música. Mas não posso. Nada me atravessa mais nesse momento do que contemplar seu rosto. Acompanhar seu movimento. Ela me olha e eu a vejo. Estou aqui mas a vejo. De fora, a vendo. Vislumbrar o fora, habitar externo. Comunicar é não estar em contato com o outro extremo. Eu tremo. Olhos em trincas de sangue nos globos brancos. Escuro. Há mais luz em algum lugar dessa parede. Eu não posso mais dizer nenhuma palavra. Eu não posso mais te enxergar daqui. Mas o fato é que você me vê. Você daí. E o que você vê? Que eu estou aqui solto. Sem nada pregado a mim e depois, como que por encanto, aos poucos, começo a enxergar os seus olhos. Seus olhos me viram e isso fez algum sentido? Um movimento seu na verdade me mostrou o quanto movida você estava por alguma coisa em mim. E não era música, talvez eu devesse lamentar. Talvez eu devesse me desculpar. Mas o fato é que você está aqui de fora e consegue ver e se incomodar o suficiente, a ponto de isso mover algo em você. A ponto de eu e a música não sermos mais um contínuo. Por agora, ora. Instantes se quebram, se perdem como as notas que não tocamos, não anotamos nas teclas. Mas há intervalos. Intervalos de respiração. Há o pulsar ininterrupto de algo que precisa tocar. O tempo todo. O tempo inteiro imprime-se na pele da ponta dos dedos dos nervos das dores. Algo como uma mecânica que não pode parar: é maior que mim. Mas um pão, um pouco, num copo que seja, de água de leite ou de vinho? Um cigarro que se acenda? Isso na verdade é quase pouco. Intervalo... Espátulas que arrancam ocos de dentro da gente. Dedos, teclas. Ditos dígitos. Todos os dizeres vêm assim, aflito. Isso é um não calmo mar. Leite que deita seu caldo por entre as frestas. O espaço de não tocar. Olho olho para você. Aqui é que você se esconde. Trincas nos olhos. Meu trajeto é injetar novamente os globos e me fechar. Eu não vou mais querer passar. Parecia assim tão claro e lá está o olho feito pedra, feito vidro a varar o ar. Atravessar. Pulso, punhos. Cesso. Acesso. O quebrar da música. O quebrar do vento.
(extraído de uns tantos outros.)

Um comentário:

  1. Parei muito aqui: "Sou na medida em que percebo o que do outro é capaz de me perceber." E pensava, a Mara domina a língua, então, como? Então, como? Num estalo: o interesse da Mara é tão somente o personagem (familiar demais), ela não está interessada no que ele vê nela, mas O QUE nele (uma coisa concreta mesmo, como um olho de vidro) é capaz de um lampejo de algo fora dele, que pode ser ela. Essa elaboração grudou em mim até o fim do texto.
    IveSampa,logopeiando a Mara.

    ResponderExcluir