Fio a
pavio. De pedaço de papel de pão. Juntava em cada ida sua à padaria. Fazia
bolas de saco amassado e jogava num canto das paredes da sala. Já agora eram
quilos de papel de pão. Onde quer que estivesse encontrava uma padaria, um pão
comprava e guardava o saco pardo de papel. Para fazer o quê não sabia. Só
juntava dia a dia as bolas de papel de pão. Parava diante daquilo e olhava as
bolas dos dias. Tantos sacos pardos de papel de pão. No canto da sala. Logo na
entrada. A bicicleta recostada na parede oposta. Os papéis juntados no canto da
parede da frente. Todos os dias contados bola a bola de papel jogado. Todos os
pães comprados de que aqueles sacos davam testemunho. O que é que pretendia com
aquele canto amontoado de papéis pardos?
As
bolas amassadas tomavam já boa parte da sala. Quando andava era necessário
desviar; muitas vezes chutava uma ou outra e depois com cuidado a recolhia e
devolvia amontoando-a de volta ao canto. O que era que pretendia? Não sabia.
Sabia que poderia parecer absurdo a quem quer que fosse aquele aglomerado de
amassados. Mas não tinha empregada ou visitas, não deixava ninguém entrar em
sua casa. Talvez quisesse mesmo parecer louco. Talvez quisesse mesmo construir
o cenário perfeito de um destempero afetivo. Talvez quisesse apenas contar
calendário a papel de pão. Marcar cadência pelo pão comprado de todos os dias.
Mais
nada guardava dos dias além do que o fazia com as bolas compradas saco de pão
todos os dias. Não era alguém para ninguém. Nada era algo para si. Daquelas
bolas de papel talvez quisesse saber o que podia o seu guardar um gesto mínimo
de todos os dias. Comprar o pão; nem sempre comê-lo. Guardar o papel que o
embrulha.
Poderia
fazer um mapa de todas as padarias. Um inventário de dizeres: pão quente
quentinho fresco o melhor o pão de cada dia a padaria do pedaço servimos bem
para servir sempre a nova caríssima carinhosa esmerada o pão da família o preço
mais praticável comprando com prazer compre aqui e coma lá nunca se esqueça de
voltar o seu sorriso é a nossa alegria nosso pão não é só feito de farinha do
forno para o seu coração compre sempre nosso pão. Um inventário das ruas. Um
inventário de nomes. Mas o que era que guardava ali além daquilo pintado no
papel era o que o comprimia.
Não nem
nunca fora um colecionador. Ao contrário, sempre não entendera o que é que
fazia as pessoas juntarem objetos semelhantes por alguma razão. Sempre uma
razão que só dizia respeito ao colecionador. Sempre uma semelhança que ou era
de gênero ou de espécie. Conhecera certa vez um que colecionava relógios
quebrados, outro, caixas de madeira, outro juntava pedras. É bem verdade que
invejava o hábito. Pensava o que poderia ser tão valioso para si a ponto de se
dar ao trabalho de varar territórios para encontrar ou então de não poder se
controlar diante de um espécime que não possuía.
Foi
quando lembrou do pão. O pão de água, sal e farinha. Esse pão retido de alguma
forma em sua alma e na alma de todos. Encontrar o único em cada pão era tarefa
que o enlouquecia quando pequeno. Sempre olhava na cesta do padeiro e tinha
muita dificuldade de escolher o seu. Sempre era o último a fazê-lo quando
sentava-se na mesa com a família. Olhava para o cada um dos pães e não
conseguia saber em si qual daqueles queria. Muitas vezes por essa razão abria
mão de comer o que lhe cabia. Esperava que alguém lhe colocasse um no prato
para não ter de escolher, mas isso raras vezes aconteceu. Era sempre instado a
escolher. Por esse motivo começou a refugar o alimento. A ponto de todos
pensarem que o não tolerava. Na adolescência já ninguém mais lhe oferecia.
Continuara olhando para as cestas em suspensão, mas como agora não se tratava
de escolha, simplesmente esqueceu. Esqueceu.
Foi
quando um dia, na solidão vivida com o opaco do corpo, diante do comum destino
que sentia ser o seu com o dos outros, pensou em ir até a padaria e comprar um
pão. Um pão escolhido ao acaso pelo padeiro. Um pão ali do amontoado que se
espremia contra o vidro do balcão. Um pequeno e simples pão que lhe viera à mão
pela mão do padeiro. Inigualável pão que lhe chegara dentro do saco, que lhe
viera quente, que repousara ao fundo pardo do embrulho até que lhe pudesse pôr
os olhos novamente já dentro de casa na cozinha. Um pequeno pão com sua dobra
rasgada marca do cozimento da massa uniforme no forno. Rasgo em fibra abertura
inequívoca que denuncia o resfolegar daquilo que cresce seca assa quase respira
no calor do forno a lenha. Fenda de farinha, sal, fermento e água gerada nas
mãos do padeiro mas consumada por sua própria textura no forno quente. Aquilo
era de novo o milagre do único pão. E por isso seguia guardando o saco que o
acolhia.
(extraído do livro "uns tantos outros".)
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