Arroubo de mar. Areia e
fagulha de gota de água na pele quente do sol do meio-dia. E eu nem consigo
respirar direito. Todos a minha volta com o corpo no sol, de maiô, roupas
poucas e eu também aqui no sol a tremer de tanto frio.
Escuro, o rasgo de céu azul
e sol no ar a me impingir a desgraçada sensação da solidão no universo. Calor e
frio. O sol ardendo minha pele queimada de sol, ardendo com um sentido de
lâmina fria. Corta, greta e joga agulhas geladas dentro do meu sangue.
Insuportável é estar
aqui, olhando as pessoas dentro da água. Alguns meninos jogando bola na areia
quente. Crianças correndo em direção às ondas. Surfistas, banhistas, meus
companheiros tomando sol, passando protetor solar, queimando o rosto,
escolhendo a melhor posição para estar ao sol. E eu procurando uma forma de
disfarçar o incômodo que é cada vez mais indisfarçável. João reparou. Agora não
vou escapar:
-- Sara, por que você
não vai dar uma caminhada? Você está toda encolhida aí!
-- Será que andar vai me
fazer bem?
-- Ora, pelo menos você
vai se mexer e não ficar aí paralisada, de braços cruzados. Parece que está com
medo de encostar na cadeira...
Realmente. Medo e dor. O
alumínio da cadeira de praia gela a minha medula cada vez que encosto nele. O
sol esquenta a pele que só serve para me mostrar como tudo o que me rodeia é
gelado e dói. “Calor que provoca arrepio.” É engraçado como dizer o mesmo pode
não resultar no mesmo que se queira dizer. “Calção, corpo aberto no espaço.”
Mais do que a anterior, essa frase me incomoda e me dá vertigem: “corpo aberto
no espaço”, pensar que estamos de cabeça para baixo em relação ao universo, que
não tem ponta nem pé. Acho que estou delirando. O céu azul-escuro rasgando aqui
em cima de mim, eu vou enlouquecer...
Vou para baixo do
guarda-sol. Aqui as coisas parecem melhorar. O contraste não é tão agudo. Mas,
aos poucos, o frio da areia meio úmida, areia da sombra, começa a gelar meus
pés. Quero uma toalha para me cobrir. Começo a notar que as pessoas me olham.
Será possível que o senso de ridículo não vai me fazer levantar? Pelo menos o
senso de ridículo, já que nada mais me remove desse pântano gelado e isento de
sentido? Sentido? Dói, quando encosto na cadeira. Vou caminhar um pouco, isso
tem de passar, não é possível.
É inacreditável como as
pessoas andam na minha direção. Elas não desviam. Ó! Quase esbarrei na nega,
que passou triscando pelo meu braço. Que inferno! Meus pés afundam na areia e a
água gelada gela meu espírito, que hoje resolveu me bordoar o corpo de
sensações. Onda. Ódio das ondas que sobem demais e pegam a gente e engolem
metade das nossas pernas. Justo agora que eu estava adquirindo um ritmo. Mas o
sol arde nos ombros e no pescoço. Para me sentir melhor seria necessário
cobrir-me com uma toalha, mas ficaria esdrúxulo eu sair assim com uma toalha
nas costas, não ficaria? Não, não preciso acrescentar essa inadequação a todas
as outras que carrego comigo. Chego ao nosso guarda-sol depois de percorrer a
extensão da praia duas vezes, num esforço de deserto e mar. Sinto-me vitoriosa.
Quem sabe consigo entrar na água, então?
-- Alguém já entrou?
Ninguém responde. Será
possível que além de invisível tornei-me inaudível?
-- Alguém, por favor, já
entrou na caceta da água?
-- Que é, menina!! --
Bia, exala: -- ficou louca?
-- Já entrou na água?
Flor!
-- Já, entrei. Vai lá,
vai. Quem sabe você melhora esse humor.
Hã! Gelada. Ui! Parece
que estão me esfaqueando os pés. Maldição! Ah! Não vou entrar, tem cabimento
essa violência?
-- Ué?! Só isso? -- Bia
não cansa de olhar para mim. Por que ela não me esquece?!
-- É, perdi o momento.
-- Ahã! Sei! O momiento -- Bia, responde, afetando a
voz.
-- Ié, darling! Dá para me deixar em pax?!
-- Que é que cê tem, hein? Parece que
não sei!!!...
-- Exatamente.
-- Que é que cê tá
sentindo?
-- Não sei! Como você
parecia ter adivinhado.
-- Você está menstruada
ou vai ficar? -- João pergunta tentando adivinhar/explicar.
-- Não. Nem todos os
mal-estares femininos se resumem ao seu momento no ciclo. É a existência que me
perturba. O estar corpo e ter de pô-lo ao sol, só porque estou pagando o hotel
e amanhã a essa hora vou estar trabalhando e lamentando que não aproveitei o
dia de hoje. É um sentimento Hardy-har-har...
-- Um sentimento o quê?!
-- coro do casal.
-- A hiena do Lippy o
leão da Hanna Barbera, desenho animado dos anos 70, lembram-se?
-- Ó dia, ó vida, ó azar
-- coro de vozes espertas!
-- Bingo!
-- Mas é só isso? --
João tentando ler entrelinhas...
-- A minha hiena traz um
Hamlet escondido numa axila e faz mesuras para Sartre.
-- É?! Ahã! -- Bia e sua
incomparável forma de transformar a mais implacável angústia numa cólica
intestinal.
-- É. Quer saber?
-- Ah, não! Juro que
não. Não começa com suas conjeturas e devaneios lúgubres.
-- Então tá! Me deixa,
ok?
É sempre isso de Bia não
querer saber, e nem João, e nem deviam porque não sei como explicar, assim, o
raio ou o trovão. A selva escura que se emaranha em meus dentes e em minhas
veias a encher de dúvida e de frio a manhã, para toda a gente azul e quente.
Olhar o mar, pensando no
fundo, no que dele sai, e o que balança as ondas. Olhar estranho para as
pessoas, vendo-as ali, banhando-se ao sabor da língua-espuma de oceano. E eu
sempre a ter de me perguntar: quando foi que isso começou, mesmo? Não isso, de
todos aqui, a receber o sol andando de um lado para outro no exercício da
extensão da praia. Mas isso de nos sabermos assim olhando uns para os outros no
exercício da extensão de si. Quando falo para Bia dessas coisas concluo que ou
ela ainda macaca ou eu atravessei a barreira do ponderável. E o que não sou,
então? Compreendo a mudez dos outros, a interrogação cada vez que pergunto:
como que aqui somos olhando e vendo, ouvindo e escutando, falando e dizendo
para uns a guardar sentido? Mas penso: ninguém há que eu toque? Quais as palavras?
E eu novamente aqui
sentada com braços e pernas a fugir da areia e do alumínio da cadeira. Sensação
cortante que se impõe ao corpo de buscar conforto e não ver aonde possa
colocá-lo para poder sentir-me estando como os outros.
Aproximo-me de Bia e
olho-a com a curiosidade de quem vive na outra esfera. Ela está lá, lânguida e
largada na cadeira reclinada; braços estendidos e jogados, rosto ao sol, leve
franzir do cenho. Olho-a bem fundo. De repente, como se ela tivesse sentido,
seus olhos se abrem e encontram os meus. Ponto. Gancho.
-- O que você está?
-- Como?
-- Não, o quê?
-- Que é, garota!? Como
assim?
-- O que você, quando
reclina e larga, está recostadamente na cadeira?
-- Isso que você viu,
assim ó.
-- Mas o quê?
-- Hã? Não entendi. Ah,
não vem, não. Já disse que não quero pensamentos lúgubres.
-- Mas não é lúgubre. Eu
penso assim no seu pousar o corpo, encostado. Só no sol. Olhando dentro de si.
-- Quê, Sara? Cê fumou?
-- Não.
-- Então, fala português
porque eu não estou entendendo nada.
-- O que você vê, quando
fecha o olho, só o corpo assim na cadeira?
-- Quando eu fecho o
olho eu não vejo nada.
-- Ah, não?
-- É, bom. Acho que não.
-- Não vêm sentidos, as
coisas assomando? Ou o sentimento do viver prenúncio o alvorecer de si, sei lá?
-- Eu, hein!? Que é que
te deu? Hoje você tá pior. Falei que aquela mistura de cerveja e vodka ia te
fazer mal.
-- Não é isso, Bia. Pelo
amor de Deus, as coisas que não sabemos às vezes não te assombram?
-- Ah, eu não! Eu
prefiro não pensar nisso.
-- Sei. Mas como é que
você faz?
-- Não faço. Fico assim
e quando vêm eu não penso mais nisso, olho para o outro lado.
-- Mas não te puxam?
-- Ahã!... Ah, puxam,
afinal, eu sei considerar os fatos, mas não me prolongo muito nessa
consideração. Acho que nesse momento não é caso.
-- Você nunca é
acometida?
-- Eu? De quê?
-- Da agonia do
universo, do ser e da sombra. Do medo e da réstia de ameba que se arrasta de
você ainda pelo chão.
-- Pára! Fala de jeito
que eu possa entender, faz favor!
-- Você nunca pensa no
avesso? Na morte, no outro mundo, outro lado? Cada um dá um nome, mas dar nome
é simplificar.
-- Penso, claro que
penso, na morte.
-- E?
-- E, o quê?
-- Que é que você pensa?
-- Ah, sei lá, na morte.
Morreu, não ter mais esse sol, a sensação dele, como será? Mas, aí, prefiro não
ir muito por aí, não.
-- Mas eu não estou
falando só da morte. Estou falando da gente no universo, rodando, boiando no
espaço incomensurável...
-- Mas se você continuar
pensando nisso vai ficar louca. -- Agora Bia expressa na voz um tom terno de
preocupação que me suspende da agonia e me faz olhá-la bem fundo com
intensidade de amor...
-- Escuta, essa história
de olho no olho não está ultrapassando os limites, não, moçada? -- João
conseguiu capturar a minha fagulha que o envolve e acomete também, assim que
pouso os olhos nele. Suas mãos instintivamente cruzam-se diante do corpo, ele
sorri e explica:
-- Às vezes, você arde
numa vibração impossível de ser compartilhada.
-- Não sei, não, se não
dá para compartilhar -- estranhamente Bia se faz compreensiva. -- Acho que é só
uma questão de ocasião; agora, debaixo desse sol, fica difícil compreender, mas
é porque dá preguiça, né? Isso tudo de que você fala me ocorre provavelmente
com tanta freqüência quanto para você. É só que eu consigo controlar esses
pensamentos, porque ficar muito centrado nisso parece ser um tanto quanto
inútil.
Olho para Bia enfadada,
pois não se trata disso em absoluto. A pressa com que ela procurou entender
quando João apontou a dificuldade acaba me arremessando para longe dela, para
longe daqui, que é onde pretendo estar em corpo ausente daqui. Alívio.
-- Bom, eu vou para o
hotel.
-- Mas com esse céu e
sol, você já vai sair? -- Bia e sua implacável compreensão para com o feriado.
-- É. -- Olho para João,
procurando sua cumplicidade e recebo um doce quase disfarçado sorriso.
Compreendido.
Saio de cena pelo atalho
do silêncio.
(extraído do
livro "Babel, é claro" - publicado em 2002.)
Genial!
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