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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

o vendo



No sofá. Há horas. Olhando, parece, para a ponta dos pés. Para a ponta única, bico, que fazem os dois pés no tapete. Encontrado somente consigo, ao que parece. Sem mais nada a olhar. As mãos deixadas ao lado das coxas. Assim. Seu olhar não é perplexo, aquele olhar estúpido das pessoas que ficam em estado catatônico. Seu olhar não é circunspecto. Seu olhar é ubíquo, o quanto podem ser ubíquas essas duas gelatinas que se inserem nas cavidades da face. Do rosto. Seu olhar ubíquo impressiona mais porque é impossível encará-lo de frente. Impressiona pela ubiqüidade que exala de seu movimento de corpo. Podemos dizer que seu corpo todo olha num movimento líquido que inscreve mil sentidos ao seu estado sentado ali no sofá. Há horas.
2ª voz — Mas ele não fala com ninguém? Alguém já tentou tirá-lo desse estado?
1ª voz — Para quê?
2ª voz — Ora, para saber o que aconteceu.
1ª voz — O que aconteceu é impossível saber. Basta olhá-lo e ver que ele está todo ali pousado nesse ato de olhando olhar.
2ª voz — O mundo lhe passa por dentro.
1ª voz — O mundo lhe toma o de dentro. Que mundo?
2ª voz — Esse mundo de fora.
1ª voz — De qual fora? O seu ou o meu? Não, definitivamente, não é o mundo o que lhe vai por dentro.
2ª voz — Impressionante.
1ª voz — Você também consegue ver?
2ª voz — Já estou vendo. É um colocar-se todo sentido ali sentado em estado de vendo.
1ª voz — Você começa a ver.
2ª voz — Olhar para ele nesse exercício é ver o ver que pode se cumprir na trajetória de um para outro.
1ª voz — E não é só isso. É matéria; tridimensionalidade aparente que o atravessa. Olhar ele ali nesse estado é vislumbrar um vendo.
2ª voz — Vendo solo: o que nos remete de novo a um dentro.
1ª voz — Não. O interno não há. Você supõe que sejamos simples vértices?
2ª voz — Umbigo do encontro entre o dentro e o fora. Tudo é o caminho. Sim, agora vejo.
1ª voz — Um caldo. Um mais que caminho, um leito de leite e rio fluindo. Colocar o pé nesse caldo é supor pé onde não somos o outro. Tudo é um fluir, fluindo.
2ª voz — Olha, parece que ele se mexeu.
1ª voz — Não, acho que não.
2ª voz — Parece sim, veja, seus olhos estão mais presentes. Piscou. E agora? O que vamos fazer se ele sair desse estado? É preciso que ele fique. Quede-se ali para que possamos ver o vendo.
1ª voz — Ele olha, olhe que ele nos enxerga. É a menos... enxerga-nos. Como prendê-lo no permanente do agora sendo? Viu? Ele nos perguntou algo. O que dizer?
2ª voz — Ao que ele nos pergunta não temos ouvido. Só temos ouvido para o ver. Apreensão de estudo.
1ª voz — Congelamento. Na borda dele há movimento. Agora escuto o que ele diz. Escute. Seu gesto empurra matéria que nos atinge. Seu som nos fala de uma superfície. Não há borda nele.
2ª voz — Nisso eu li, eu vi o olho dele. Agora escute de novo ele nos dizendo.
1ª voz — O que ele diz em mim é um silêncio.
2ª voz — Fechou-se?
1ª voz — Do que plausir mais do que o que ele nos diz? Contra-matéria. Silêncio é um o que ele diz.
2ª voz — Espera. Estou escutando; melhor: vendo. Ele se aproxima. Ele traz um calor com seu corpo vindo. Matéria caldo que nos converge, que nos conflui.
1ª voz — E o que é que vemos? Vemos ele ali vindo e vendo cada um de nós de seus globos a nos engolfar como um movimento. Vemos. Esse é um momento?
2ª voz — Caldo de contato num corpo-abraço. Esse é o movimento.
1ª voz — Nem tudo é espaço ou tempo. Nem tudo é fora ou dentro. Na verdade nada — coisa surpresa —, tudo é elemento. Pensamento é matéria quando vindo de um que não se fez nome. Que só se fez dobra donde tudo nada no veloz do vin
2ª voz — de vir...

(extraído do livro uns tantos outros.)

Um comentário:

  1. Impressiona o meu "fora" ser diferente do de todos. (Ontem na rua fiquei chocada com um cara maltrapilho rindo das pessoas e falando: "É tudo mentira!" Acho que não estava loko.)
    "Não há borda nele." Então está morto, pois "a morte é a perda de contornos", segundo Otávio Paz.
    "... nada no veloz do vin"
    3ª voz - vinho.
    IveSampa amou seu texto.

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