Powered By Blogger

sexta-feira, 6 de julho de 2012

flash!


Ontem mesmo eu estava sentado na varanda do meu apartamento, quando senti um vento estranho. Aos poucos fui-me dando conta do quanto não se pode segurar um vento quando ele vem sobre as nossas coisas. E era uma situação aparentemente simples: eu estava ali semidespido na varanda. Havia tirado a camisa e jogado sobre a grade. Havia espalhado sem perceber os cadernos do jornal. De repente, uma rajada forte de vento arremessou minha camisa para fora e num ato reflexo eu tentei pegá-la. Quando vi estava com meio corpo pendurado para fora da grade. Olhei para o chão dali do nono andar. Nunca tive medo de altura em toda a minha vida, mas naquele instante imprevisto eu senti meu corpo em  vertigem, a possibilidade da queda. Medo. Fisgada de medo que se alojou no estâmago, digo, ômago. Ômega.
Parado ali, tendo a altura e o vento a me circunscrever, fiquei em pêndulo de pernas e tronco com a grade pelo estômago com medo. Instinto rápido, algo em mim moveu o peso interno do corpo e pude novamente sentir os pés e colocá-los peso sobre o chão. Por momentos, resgatado do arremesso involuntário, senti um alívio de autocontrole. Segundos, átimos, depois, senti novamente o vento em meu cabelo, o vento sobre as folhas do jornal que se desprendia leve do chão e voava à altura da grade da varanda. Estiquei novamente o corpo sem pensar para agarrar a folha de um encarte desses com ofertas de supermercado. Antes da grade pude segurá-lo, porém a essa altura aquilo tudo começou a representar um perigo imenso de atos reflexos. Catei o que pude e entrei para a sala de estar, fechando a porta de vidro. Fiquei ali em pé, olhando o vento carregar de um lado para o outro as folhas do jornal que deixei de catar. Olhando o céu se armar de preto para a tempestade. Ar de sombra chegando na tarde.
Ali parado em pé, o estranho era a sensação de vertigem que não havia se desfeito, ainda. Pelo contrário, antes localizada em frio no estômago, a vertigem parecia ter-se instalado no coração. Batidas fortes, vendo o vento, que aumentavam, avolumavam-se em coração. Ataque cardíaco? Idade eu tenho para isso, pensei. Aumento de um tum-tum que escuro e forte batia duro dentro do peito. Ataque!
Ridículo, não pode ser.
Aquilo era o ver o vento jogando árvores, assobiando a tempestade, trazendo o escuro para dentro daquela tarde e talvez a lembrança ainda próxima da altura não calculada encarada há minutos. Um quase nada que me fazia ali geléia humana, ainda bem que desacompanhado. Medo da morte. Não que nunca tenha sentido. Mas, assim parado, congelado nos órgãos, o friozinho do que será, eu nunca tinha sentido. Em seguida a esses instantes nada se acalmou em mim. Nada. Eu nunca havia me detido a pensar na morte, em como poderá ser o momento da morte. Naquele instante, trazido por um arremesso, o pensamento da morte tomou conta de mim. E agora, como é que vai ser?
O tudo simples, prático e objetivo que havia vivido até então, desapareceu num minuto diante daquele vento. A iminência. Em instantes, comecei a imaginar uma catástrofe natural se aproximando com aquele vento. Imaginei um ciclone arrancando árvores, arrancando carros do chão, arrancando pessoas da calçada. Ali, passando na rua, uma senhora arremessada contra o muro do prédio em frente. Placas de luminosos voando ainda mais leves e desgovernadas que minha camisa ou as folhas do jornal. Postes de fios balançando, eletrocutando tudo aquilo em que encostam. Horror do descontrole, do não-seguro, do impossível de se conter. Inadministração.
Legumes vivos, alvo exposto: a incomensurabilidade do diminuto.
Negar três vezes de nada adianta, Pedro, a morte há de vir, e já que virá por que não deixar-se digno levar em seu momento? Nada, há sempre o antes. Terror premonitório. Todas as possibilidades. Cada passo que se dá nas ruas. O em pé na plataforma do metrô, esbarrão, corpo no vão dos trilhos, esmago eletrocutado. Tudo é ataque, cair de escada, degrau de escada-rolante que come o corpo do caído, rasgo, dilaceração. Tudo é acidente, imprevisto, impredito, descrever encenar em mente o indizível. Varandas que desabam, canos de gases que explodem, asfaltos que se abrem em gretas e levam corpos humanos para o fundo correr do esgoto. Nada escapa, tudo escorrega, espatifa, espirra, esbarra, esparrama, esvai. Expande explode escapole extrai. Predição.
Nunca mais tive paz, depois de ontem à tarde na varanda; em que cheguei mais cedo do trabalho.
(extraído do livro babel, é claro, 2002.)

2 comentários:

  1. nada como a tranquilidade da certeza absoluta

    ResponderExcluir
  2. Uma rajada em cheio no rosto.
    O acordar.

    Lindo

    Isa

    ResponderExcluir