Ontem mesmo eu estava
sentado na varanda do meu apartamento, quando senti um vento estranho. Aos
poucos fui-me dando conta do quanto não se pode segurar um vento quando ele vem
sobre as nossas coisas. E era uma situação aparentemente simples: eu estava ali
semidespido na varanda. Havia tirado a camisa e jogado sobre a grade. Havia
espalhado sem perceber os cadernos do jornal. De repente, uma rajada forte de
vento arremessou minha camisa para fora e num ato reflexo eu tentei pegá-la.
Quando vi estava com meio corpo pendurado para fora da grade. Olhei para o chão
dali do nono andar. Nunca tive medo de altura em toda a minha vida, mas naquele
instante imprevisto eu senti meu corpo em
vertigem, a possibilidade da queda. Medo. Fisgada de medo que se alojou
no estâmago, digo, ômago. Ômega.
Parado ali, tendo a
altura e o vento a me circunscrever, fiquei em pêndulo de pernas e tronco com a
grade pelo estômago com medo. Instinto rápido, algo em mim moveu o peso interno
do corpo e pude novamente sentir os pés e colocá-los peso sobre o chão. Por
momentos, resgatado do arremesso involuntário, senti um alívio de autocontrole.
Segundos, átimos, depois, senti novamente o vento em meu cabelo, o vento sobre
as folhas do jornal que se desprendia leve do chão e voava à altura da grade da
varanda. Estiquei novamente o corpo sem pensar para agarrar a folha de um
encarte desses com ofertas de supermercado. Antes da grade pude segurá-lo,
porém a essa altura aquilo tudo começou a representar um perigo imenso de atos
reflexos. Catei o que pude e entrei para a sala de estar, fechando a porta de
vidro. Fiquei ali em pé, olhando o vento carregar de um lado para o outro as
folhas do jornal que deixei de catar. Olhando o céu se armar de preto para a
tempestade. Ar de sombra chegando na tarde.
Ali parado em pé, o
estranho era a sensação de vertigem que não havia se desfeito, ainda. Pelo
contrário, antes localizada em frio no estômago, a vertigem parecia ter-se
instalado no coração. Batidas fortes, vendo o vento, que aumentavam,
avolumavam-se em coração. Ataque cardíaco? Idade eu tenho para isso, pensei.
Aumento de um tum-tum que escuro e forte batia duro dentro do peito. Ataque!
Ridículo, não pode ser.
Aquilo era o ver o vento
jogando árvores, assobiando a tempestade, trazendo o escuro para dentro daquela
tarde e talvez a lembrança ainda próxima da altura não calculada encarada há
minutos. Um quase nada que me fazia ali geléia humana, ainda bem que desacompanhado.
Medo da morte. Não que nunca tenha sentido. Mas, assim parado, congelado nos
órgãos, o friozinho do que será, eu nunca tinha sentido. Em seguida a esses
instantes nada se acalmou em mim. Nada. Eu nunca havia me detido a pensar na
morte, em como poderá ser o momento da morte. Naquele instante, trazido por um
arremesso, o pensamento da morte tomou conta de mim. E agora, como é que vai
ser?
O tudo simples, prático
e objetivo que havia vivido até então, desapareceu num minuto diante daquele
vento. A iminência. Em instantes, comecei a imaginar uma catástrofe natural se
aproximando com aquele vento. Imaginei um ciclone arrancando árvores,
arrancando carros do chão, arrancando pessoas da calçada. Ali, passando na rua,
uma senhora arremessada contra o muro do prédio em frente. Placas de luminosos
voando ainda mais leves e desgovernadas que minha camisa ou as folhas do
jornal. Postes de fios balançando, eletrocutando tudo aquilo em que encostam.
Horror do descontrole, do não-seguro, do impossível de se conter.
Inadministração.
Legumes vivos, alvo
exposto: a incomensurabilidade do diminuto.
Negar três vezes de nada
adianta, Pedro, a morte há de vir, e já que virá por que não deixar-se digno
levar em seu momento? Nada, há sempre o antes. Terror premonitório. Todas as
possibilidades. Cada passo que se dá nas ruas. O em pé na plataforma do metrô,
esbarrão, corpo no vão dos trilhos, esmago eletrocutado. Tudo é ataque, cair de
escada, degrau de escada-rolante que come o corpo do caído, rasgo, dilaceração.
Tudo é acidente, imprevisto, impredito, descrever encenar em mente o indizível.
Varandas que desabam, canos de gases que explodem, asfaltos que se abrem em
gretas e levam corpos humanos para o fundo correr do esgoto. Nada escapa, tudo
escorrega, espatifa, espirra, esbarra, esparrama, esvai. Expande explode
escapole extrai. Predição.
Nunca mais tive paz,
depois de ontem à tarde na varanda; em que cheguei mais cedo do trabalho.
(extraído do livro babel, é claro, 2002.)
nada como a tranquilidade da certeza absoluta
ResponderExcluirUma rajada em cheio no rosto.
ResponderExcluirO acordar.
Lindo
Isa