Alma
presa na caneca e vou ver o romper do dia. Com a camisa empapada, molhado o
linho branco. Abri a porta da cozinha e olhei para fora. Desci os degraus. À
direita o terreiro de galos. À esquerda o pasto malcuidado. Em frente ainda o
pasto malcuidado e as montanhas. Montanhas azul-marinho e a luz irrompendo ao
final dos olhos, no horizonte. Abordava já a abóbada da Terra a luz clara
esmaecida de um sol cor de prata que nascia para um dia cinza. E o latir de um
cão ao longe. A caneca com o líquido quente e preto feito tinta preta a pintar
papel com a ponta da caneta. O dia nascia e eu ali com a caneca quente de ágata
na mão. Mugido, patas de cavalo ao chão. Migalhas e patos e galinhas se
aproximam da porta da cozinha ao perceber movimento. Eu estava lá. E era plena
manhãzinha o começar do dia era a aurora a aurora era um quase-clarão. Ao final
daquela noite horrível em que tive de admitir para os meus filhos que não tinha
mais de onde tirar o pão. Sair matando gente isso nada dissolveria a situação.
Eu estava ali presa do dia sem nada poder fazer. A fazenda aos pedaços. As
vacas todas a adoecer. As contas. Água que não era mais potável. Água que não
se bebia. Que não se podia mais beber. Eu estava ali com a camisa de linho
empapada de suor ao romper resoluto de mais um dia e era dia a ver o que me
restava era ver o dia nascer.
E não
era isso tudo no fundo falso? E não era mudo esse começo de um dia após uma
noite com todas essas felpas de luminosidade da percepção? Não era tudo escrito
com a tinta da caneca o café preto que da ágata esquentava minha mão? Era tudo
um pouco me lixando para os meus filhos para o pasto para as galinhas para a
pouca de água potável que ainda havia. No fundo do poço eu não tomava um só
gole aflito daquele café. Eu estava era vendo o nascer de um dia que se fazia
nesga de preto e prata no rasgo laminar de um horizonte estalado nas minhas
retinas. E nada de tirar o pão que nem de filhos que nem de leite que nem de
vaca que nem de pasto dei conta não. Era tudo com o único fito de viver fugido
idílio. Isso que da sensação da alma presa na caneca empapada camisa de lindo
linho vinha. Isso de não dar conta, o que no fundo não veio não vindo um movimento
de me fazer. Vala da inundação de dizer para os meus filhos que não tenho de
onde tirar o pão é o que nascia naquele esgar de dia que se erguia. Filhos
aflito eu a dizer e o dia que nasceu depois disso.
Um
misturar de camadas. Desde que eu decidira que iria morar na fazenda. Desde que
eu decidi que ia levar meus filhos comigo. Desde que eu decidira que
abandonaria tudo porque a fazenda ia a todo vapor era só uma questão de manter.
Depois
o desmazelo e a impraticidade. O estar perplexo ante cada complicação. As
visitas ordinárias do veterinário. O leite que não verte. O mato que crepita
bordeja espraia avulta e toma conta de todos os caminhos. A cerca que apodrece.
Os funcionários que não sei o que é que eu sempre digo nunca é o que eles
conseguem ouvir. O não infinito, tudo de quina, tudo tropeço, tudo uma peça
errada no lugar errado no dia errado no gesto errado a falta completa de jeito.
E eu de camisa de linho apoiando os braços agora na cerca. Era fugir dali e
encontrar de novo o asfalto a poça o nunca chegar na água o nunca aportar
seguro. Alma presa na caneca e o líquido que ali havia agora frio, caldo do
denunciar do equívoco.
Eu não
pude ver como foi que cheguei aqui. Eu não pude ver o que foi que me fez
chegar. Eu não pude ver um só minuto o corredor extenso que me trouxe para
isso. Nada aconteceu comigo. Tudo foi devido, porque afinal agora eu vejo era
eu que estava completamente distante do que era preciso. Deflagrar fracasso um
esperar do alvorecer à meia-noite. Uma parede por onde me escoro. O centro
agora é deixar vir toda essa modorra.
O dia
morno irrompendo na retina. Ardia ali aquela prata preta de céu que se fazia e
carregava ainda mais meu senso de peso. Imersão num sentimedo de ver o mundo
sob uma atmosfera escura como se o dia o que me acontece sempre virá bordado de
uma sombra de breu. E aquele céu ardido que se fazia me submergia no mais
profundo ar fechado, canto opaco, tapado. Mas ainda assim não se podia dizer
que não se tratava de um novo dia.
Não
tinha mais como, porém, porque não tinha mais pão. Não arrumava mais nada. Era
guiar o carro pela estrada a carregar as malas e me devolver à cidade, à casa,
às paredes de verdade.
Tudo
foi um delírio deflagrado de um gesto feito olho do que se inscreveu imagem. A
fazenda. Como se o gerúndio do substantivo tivesse me sufocado o gesto. Estava
e sempre esteve ali e o meu fracasso acabara sendo um triunfo o de desfazê-la.
A fazia, mas o gesto era sempre antes, ou fora. Como se numa esteira circulante
o instante preciso fosse sempre perdido. A falta de ritmo. Afasia.
Agora
era entrar no carro, na casa, no martírio do novo dia a dia. En la masmorra.
(extraído do livro uns tantos outros.)
Agora leio seus textos não só me encantando com o que eles transmitem mas tbm observando, com bem mais atenção, sua maneira linda de escrever!
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