Chão de
areia, pedrinhas ínfimas e uma borboleta. Fotografia. Estava abril e o
claro-escuro da atmosfera nos dava as 14 horas como uma alegria de sombra fria
e estridente fulgor do céu e do sol e do outono que nos refrescava. Andávamos
na praia vazia. Olhamos para trás e nossas pegadas lado a lado faziam dunas em
contraste do amarelo areia e o cavado escuro pelos nossos pés naquela tarde.
Arco no
ar quando nos encontros aproximávamos os nossos pulsos nossos fluxos e por
alguma química de nossos equívocos éramos criaturas mágicas um para o outro. E
isso era um pra sempre que se armava de nossos laços de nossa voz. Campo de força
que bania para fora todo o perigo.
Cavo na
distância as palavras só as do que fomos. Mas o que poderia dizer de nós, que
fomos, só com o olhar por essa face?
Daquela
tarde de areias e pegadas, daquele dia em que nos espraiamos pelo céu e pelo
sol, muito se inaugurou na diferença. Aqueles todos ventos em nossos cabelos em
nossos panos, aqueles todos passos cavoucando eram passos para o oposto um de
cada um.
O que
desconhecia naquela época era o que eu era era o que você era. Falo de conhecer
com o saber salgado o eflúvio da onda o úmido do ar; conhecer com a tripa e com
o corpo. Naquela época isso não chegava a capturar. Assim desvaneciam-se-me os
sentidos e eu ficava apartada dessa apreensão.
Eu não
te via; o que eu via só vinha de mim. Eu soprava e te fazia criatura do que só
eu podia. Você de sua parte se ocupava em me supor e em me suprir. Alimento
alimentiras alimentranhas que não faziam nada além de estar voltadas para o que
não viam.
Aquele
zero que fomos não era algo que se pudesse ver. Éramos o zero por onde
passávamos entranhas; aros que julgávamos nos preencher. Mas também vibrávamos
à nossa revelia. E esse reverberar teve um poder alquímico de transmutar em mim
o que era resíduo. De inaugurar um outro modo de me fazer plausível e de me dar
a ver. Foi desse um dia abrido que dei por mim a desejar o instante. E em você
não projetei mais o abrigo.
Cavar
no oco. É o que não mais procuro.
Mas
tenho de passar pelas paredes e portas por onde vivemos, já que nossa história
não vem só do que eu via naquela tarde na praia vazia.
Paredes
e portas de onde não soubemos escapar. Comprimidos, esmagados pelo nosso
ordinário enxergar. Nosso espaço afiado por lâminas ardidas a frisar os poros
cortar nossos pulsos interromper nosso fluxo. Nosso diário ácido de alimentar o
que de pouco havia o que de ponta havia em nossa prisão espelha de nos querer
afirmar só o ínfimo.
Cacos
de labirinto o corredor a sala a cozinha, a janela a porta e a pia e mais
sobretudo a nossa calvária mobília por onde não nos deixamos escapar. Não nos
deixamos vir eternos naquilo que de nós podíamos ter feito o infinito. Fomos
cumes invertidos. Nossa avidez não nos deu nada a não ser o voraz e o
interrompido. Ódios nos ódios nossos olhos aduncos nos comprimiram para o cada
vez mais aflitos.
Portas
e paredes e a luz que entra por esse canal. Abissal. E as sombras foram facas a
cortar nossos vultos que a despeito de tudo ainda se debatiam para tentar
passar. Por paredes e portas pisando os tapetes das salas num enovelar
obstante, obtemperante; subterfúgio incessante de procurar ter de volta o que
nunca conhecemos. O que fugia de nós um fugir permanente. Roçar de equívocos
gerando arestas esquinas.
Você me
abarcava e com sua asa só me afastava. Eu constatava que nunca conseguira te
ver. Nós nos perdíamos por entre o que queríamos ser. Fuga de ausentes.
E não
porque não nos tenhamos segurado com todos os dedos.
Nossas
angústias nosso havido medo. Tudo o que fazíamos era um engate de unhas era um
mútuo atropelo. Nosso zelo era um não nos achar porque insistíamos em procurar
nossos obliterantes mesmos. Eus de conchas ocultadas de seu próprio vindo.
Assim,
instante a instante, quando vimos já nem na praia nos pertencíamos.
Já nem
nas tardes, nem nas nesgas de dias, nos fiapos de crepúsculos nos convivíamos.
Nosso viver comum era um escoar de corpos de olhares de abraços. Um escoar
ininterrupto que nenhum dique podia aplacar. Éramos outros fios a nos
entrelaçar outros novelos. E nem podíamos rir ou chorar. Nem podíamos olhar
para o aquilo que estávamos fazendo, que estava nos acontecendo, que estávamos
acontecendo.
Sei que
escrevo um não configurar da nossa história. Meu texto cava o que não mais se
pode experimentar; rasura que só explica em traços que não fabrica os rostos. Porque não há o
que acrescentar, não há histórias para desenvolver. Porque o que vem escrito
vem sempre vulto. Essa vertigem essa voragem essa ranhura você jamais
conseguirá ver. O que fulguro é farpa nesse texto estranho a ocupar seus olhos
e os seus sentidos com letras esquivas.
Só o
que digo a título de epílogo é que fomos o U da vala, o que ainda que pareça
nada enseja a superfície cava.
(extraído do livro "uns tantos outros".)
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