This is the end. Em todos. Porque
navega dentro do sangue o indiscriminado entre o bicho que deixou de ser bicho
e o homem que nem sabe o que é humano.
Em todos em todos em todos: olho do como é que você da quina agulha
meu ser? A criança; as dobras todas do intestino, todas as torções musculares.
Todos os gritos de dor que nem sequer sabemos dar. Estamos todos todos todos
todos, sem exceção, caminhando para o deserto. O deserto. Areias escaldantes
depois de ver o horror.
Paredes quebradas. Ex-janelas. Batentes em ruínas. Parecem grandes
montes de merda empedrada pela avenida. Aberta avenida. Sobre o solo de barro
abrido ao infinito. Agora, as árvores tomam a avenida. Agora os viadutos caídos
mostram o dentro, as entranhas arquitetas, malhas de ferro e aço, redes
afogadas pelo concreto agora ruído. Covas. Corpos.
...Mas o que houve aqui?
Era no deserto. Ninguém sabia quem eu era. Camelo em pé de apalpo.
Cravando cada olho. Espraio-me de priscas eras. (Convés, convém, convivas,
palavras remotas, dentro de mim repetidas.) O resto é o cascalho de areia
quebrada, o solo erguido do que são os edifícios destruídos. Não há mais
navios, não há mais caminhos, há agora areia, cascalho, feita de cacos de
asfalto. E é tudo amarelo e marrom e cinza. E tudo esgueira pela antes rua,
pela agora meda via. Ratos. Ratos. Ratos.
Calpe, culpe, calia, cama, nitrato, vitrina, vitral, vidrilho,
migalha! Tudo é um configurar de trechos sem bordas.
Fronteiras a varar. Roupas penduradas para secar. Roupas soterradas
para secar ao ar. E não há mais ar. Não há mais har.
As névoas, as nesgas já não existem. Tudo é nítido, tudo é um
compelir, impelindo, à aguda percepção. O
que ocultar nesse imenso vazio, no deserto? Estar aqui olhando,
perscrutando tanta atenção: obstinação reflexa que gera as franjas do real.
Vara a mente, vara a íris. Os olhos, ocultos por detrás do cérebro, enxergam
demais. Fabricam infinitos prismas, faces da apreensão; confiscam a realidade.
Enxergam-na por si, esquadrinham-na, sabem como fazê-la. Plenitude extrema da
razão. Cada fagulha de imagem é obtida e transfigurada. A realidade arrasta-me
de encontro a essa nuvem de nitidez, arrancando-me toda centelha do borbulhar
de vísceras.
Nesse silêncio, nesse nada, onde a princípio tudo parece igual,
depois tudo é tão diferente, depois tudo tão complexo e tão absurdamente físico
e, por isso, díspar. Essa presença irrigada pela aridez. Iridescer, luzir da
ausência, e o pensamento na amplitude.
Não tenho nada com que deparar para aplacar essa constância de
pensamento, de percepção. Tudo é tão nítido e claro. E vazio. Ninguém sabe quem
eu sou. Estou andando. O camelo balança meu corpo para a frente e para trás.
Ninguém sabe quem é. Poucos e raros são os momentos em que eu mesmo posso
dar-me à consciência o saber-me eu. Tudo ficou sem sentido. Todos estão andando
como eu. Todos todos todos caminham infinitamente para dentro das areias.
Porque tudo corre por se tornar areia. Um esmigalhar das coisas todas, que
acomete os objetos fabricados. Como um vírus muito potente, na realidade não me
lembro qual. Nem sei mesmo como consigo escrever estas palavras aqui neste
papel. Não sei como consigo encontrá-lo, lembrá-lo. Tudo se perde no instante
seguinte. Todavia, o que não consigo é deixar de perceber, mas, cada vez que
tento trazer sentido para as coisas, elas se desfazem. Perco a linha de
raciocínio. Prendo a atenção, percebo no vazio.
Prédios em lascas. É o que vejo. E esse animal embaixo de mim a
balançar-me num ritmo monótono. E essa crescente consciência da fagulha, das
coisas que se transformam gradativamente, que se dissolvem; melhor, que se
esfarelam milimetricamente, transformando-se cada vez mais em areia.
Eu esqueci quem sou. Eu esqueço. Eu esqueço o que é que essas
pessoas todas estão fazendo indo para o lugar oposto ao lugar para onde o meu
animal parece querer me levar. Não há mais falar. Não consigo entender uma só
palavra do que me dizem. Não consigo pronunciar uma só palavra que faça sentido
para outrem. Muitas vezes tentei dar este texto para outros lerem, mas ninguém
nem sabe o que é que quero quando aponto o dedo para o papel. Olham para o
papel pensando (pensando?) que quero tratar dele. Encostam o dedo nele e esse
gesto todas as vezes produz a degeneração do material. Tantos buracos feitos
que acabei desistindo de mostrar o que escrevo. Assim é também com os panos que
visto. Ninguém pode encostar em mim. Nem eu posso encostar em ninguém. Não nos
podemos tocar ou cheirar, as coisas que nos vestem entram em estado de
decomposição. Assim é com a memória. Esqueço menos quando estou só, a escrever.
Mas não ousei ainda fabular quem sou.
Ir para onde? Sempre me ponho a dizer. Cada vez que pronuncio essa
frase sou olhado com susto. Já passei pelo desespero de querer tocar, mas a
experiência amarga de ver se desvanecerem as vestes de meu interlocutor é mais
assustadora do que a angústia de querer tocar ou dizer. Dizer o quê? Ademais,
não posso exalar em direção a algo ou mesmo a alguém, que desfaço qualquer
arcabouço daquilo ou daquele a quem dirijo meu hálito ou minha voz. Esqueço o
que ia fazer ou dizer, é inútil então prosseguir. Dou graças, sei lá a quê, que
ainda nos possamos olhar. Olhamo-nos mutuamente e a maioria desses olhares se
erige no medo e na dor. Precavidos contra o desvanecer do ser.
Amanhã talvez tenha coragem de reler e ver o que configurei e o que
pude acumular e o sentido que poderei dar a tudo isso. Amanhã.
Não posso vestir outras roupas. Cada vez que toco nos panos ainda
inteiros que encontro pelo caminho os desfaço. De modo que a cada minuto
torno-me mais nu. Na verdade nem sei como estamos vivos ainda, porque a água
que tocamos transforma-se em algo que não sei bem o que seria. É como um dividir-se.
Decompor de átomos a desfazer a água que beberíamos.
O que nos resta, parece, é só
ver. Primeiro foi um transitar de muitas gentes. Aos poucos, nós poucos,
começamos a ver as pessoas a se desfazerem. Não havia aquilo que conheci no
passado como gritos de dor. Não havia desespero no olhar. Parecia um querer se
quebrar no vácuo de cada uma dessas pessoas. Sobramos o quê? Tenho medo de
perguntar, porque isso seria me dizer. Não sei o que comigo pode acontecer.
Espaço.
Ao ler as últimas frases fui acometido de um espaço. Todavia não
terminei. Não me desfiz. A sensação era só o espaço. Ruuuuuuuuu um som do vazio
interno. O que será isso? Não posso pensar, dirigir minha percepção para o que
é meu configurar espaço.
Meu camelo parou de andar.
Parou. Desci dele. Pisei sobre escombros do que sei lá o que era aquilo. Canos,
parecem canos, porque se estão fazendo em pedaços que, pontiagudos, machucam-me
a sola dos pés. Sangra. Líquido vermelho. O sangue escorre e não se desfaz.
Esfrego, então, a palma até rasgá-la e ver sair esse único líquido no qual pude
tocar sem que ele deixasse de sê-lo. Bebo. Alimento. Boca, fel, sensação fel de
nutrimento. Olho para a palma e vejo as linhas do que era. Olho e vejo as
linhas do que sou. O que sou? Nem mesmo a areia desse tempo me roubou a
sensação do que pude sentir que sou. Corpo escorrido de dentro o sangue,
alimento líquido viajando em retorno. Não vazio. Não espaço. Antes cuido que
sou dentro. Carne e líquido. Camadas. É o caso de dizer que sou feito de
avesso. Entre minhas errâncias existem grotas para onde escorrem rios. Sou o
avesso. O outro lado, que se arrasta pelas beiras. Corda roçada, tremida, eu
sou a tripa.
Arremesso-me no abismo, na garganta sem água. A garganta em lança.
Arremesso de faquir que arranca de si somente cacos. Sou o que se consuma, o
que se consuma estilhaço.
Olho, continuo vendo. Olho para minhas mãos e não me desfaço. Digo
algumas palavras em voz alta e pela primeira vez estou só. Não há quem esteja
aqui ao lado que eu não possa tocar. Finalmente estou só. Ainda não sei quem
sou mas já posso ver que estou só. Pude reler, pude reler e ver entre as coisas
todas escritas o eco delas aqui dentro. Sinto-me dentro.
Estrada, agora há uma estrada aberta. Nela não há nem um sinal de
escombros. É uma estrada que conduz a um imenso vazio de sol, cascalho e areia,
areia mesmo, areia havida dos muitos tempos que a fizeram grãos. Espraio-me de
priscas eras. Era o deserto, para onde eu finalmente ia.
(extraído do livro "Babel, é claro" - publicado em 2002.)
O ar do texto arranha meus olhos, lixa minhas narinas, entope meus pulmões, solidifica meu sangue. "Estase no" claro, Syvia Plath. Sufoco porque me identifico, meu animal me transporta pelo deserto.
ResponderExcluirIvSam
Unknown... Infelizmente não publico comentários que não tenham algum tipo de assinatura. Mesmo que sejam elogios. Fico pensando - quem critica e não assina não assina a crítica. Por isso não publico. O mesmo se aplica a quem elogia...
ResponderExcluir