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quarta-feira, 10 de abril de 2013

no deserto



This is the end. Em todos. Porque navega dentro do sangue o indiscriminado entre o bicho que deixou de ser bicho e o homem que nem sabe o que é humano.
Em todos em todos em todos: olho do como é que você da quina agulha meu ser? A criança; as dobras todas do intestino, todas as torções musculares. Todos os gritos de dor que nem sequer sabemos dar. Estamos todos todos todos todos, sem exceção, caminhando para o deserto. O deserto. Areias escaldantes depois de ver o horror.
Paredes quebradas. Ex-janelas. Batentes em ruínas. Parecem grandes montes de merda empedrada pela avenida. Aberta avenida. Sobre o solo de barro abrido ao infinito. Agora, as árvores tomam a avenida. Agora os viadutos caídos mostram o dentro, as entranhas arquitetas, malhas de ferro e aço, redes afogadas pelo concreto agora ruído. Covas. Corpos.
...Mas o que houve aqui?
 
Era no deserto. Ninguém sabia quem eu era. Camelo em pé de apalpo. Cravando cada olho. Espraio-me de priscas eras. (Convés, convém, convivas, palavras remotas, dentro de mim repetidas.) O resto é o cascalho de areia quebrada, o solo erguido do que são os edifícios destruídos. Não há mais navios, não há mais caminhos, há agora areia, cascalho, feita de cacos de asfalto. E é tudo amarelo e marrom e cinza. E tudo esgueira pela antes rua, pela agora meda via. Ratos. Ratos. Ratos.
Calpe, culpe, calia, cama, nitrato, vitrina, vitral, vidrilho, migalha! Tudo é um configurar de trechos sem bordas.
Fronteiras a varar. Roupas penduradas para secar. Roupas soterradas para secar ao ar. E não há mais ar. Não há mais har.
As névoas, as nesgas já não existem. Tudo é nítido, tudo é um compelir, impelindo, à aguda percepção. O  que ocultar nesse imenso vazio, no deserto? Estar aqui olhando, perscrutando tanta atenção: obstinação reflexa que gera as franjas do real. Vara a mente, vara a íris. Os olhos, ocultos por detrás do cérebro, enxergam demais. Fabricam infinitos prismas, faces da apreensão; confiscam a realidade. Enxergam-na por si, esquadrinham-na, sabem como fazê-la. Plenitude extrema da razão. Cada fagulha de imagem é obtida e transfigurada. A realidade arrasta-me de encontro a essa nuvem de nitidez, arrancando-me toda centelha do borbulhar de vísceras.
Nesse silêncio, nesse nada, onde a princípio tudo parece igual, depois tudo é tão diferente, depois tudo tão complexo e tão absurdamente físico e, por isso, díspar. Essa presença irrigada pela aridez. Iridescer, luzir da ausência, e o pensamento na amplitude.
Não tenho nada com que deparar para aplacar essa constância de pensamento, de percepção. Tudo é tão nítido e claro. E vazio. Ninguém sabe quem eu sou. Estou andando. O camelo balança meu corpo para a frente e para trás. Ninguém sabe quem é. Poucos e raros são os momentos em que eu mesmo posso dar-me à consciência o saber-me eu. Tudo ficou sem sentido. Todos estão andando como eu. Todos todos todos caminham infinitamente para dentro das areias. Porque tudo corre por se tornar areia. Um esmigalhar das coisas todas, que acomete os objetos fabricados. Como um vírus muito potente, na realidade não me lembro qual. Nem sei mesmo como consigo escrever estas palavras aqui neste papel. Não sei como consigo encontrá-lo, lembrá-lo. Tudo se perde no instante seguinte. Todavia, o que não consigo é deixar de perceber, mas, cada vez que tento trazer sentido para as coisas, elas se desfazem. Perco a linha de raciocínio. Prendo a atenção, percebo no vazio.
Prédios em lascas. É o que vejo. E esse animal embaixo de mim a balançar-me num ritmo monótono. E essa crescente consciência da fagulha, das coisas que se transformam gradativamente, que se dissolvem; melhor, que se esfarelam milimetricamente, transformando-se cada vez mais em areia.
Eu esqueci quem sou. Eu esqueço. Eu esqueço o que é que essas pessoas todas estão fazendo indo para o lugar oposto ao lugar para onde o meu animal parece querer me levar. Não há mais falar. Não consigo entender uma só palavra do que me dizem. Não consigo pronunciar uma só palavra que faça sentido para outrem. Muitas vezes tentei dar este texto para outros lerem, mas ninguém nem sabe o que é que quero quando aponto o dedo para o papel. Olham para o papel pensando (pensando?) que quero tratar dele. Encostam o dedo nele e esse gesto todas as vezes produz a degeneração do material. Tantos buracos feitos que acabei desistindo de mostrar o que escrevo. Assim é também com os panos que visto. Ninguém pode encostar em mim. Nem eu posso encostar em ninguém. Não nos podemos tocar ou cheirar, as coisas que nos vestem entram em estado de decomposição. Assim é com a memória. Esqueço menos quando estou só, a escrever. Mas não ousei ainda fabular quem sou.
Ir para onde? Sempre me ponho a dizer. Cada vez que pronuncio essa frase sou olhado com susto. Já passei pelo desespero de querer tocar, mas a experiência amarga de ver se desvanecerem as vestes de meu interlocutor é mais assustadora do que a angústia de querer tocar ou dizer. Dizer o quê? Ademais, não posso exalar em direção a algo ou mesmo a alguém, que desfaço qualquer arcabouço daquilo ou daquele a quem dirijo meu hálito ou minha voz. Esqueço o que ia fazer ou dizer, é inútil então prosseguir. Dou graças, sei lá a quê, que ainda nos possamos olhar. Olhamo-nos mutuamente e a maioria desses olhares se erige no medo e na dor. Precavidos contra o desvanecer do ser.
Amanhã talvez tenha coragem de reler e ver o que configurei e o que pude acumular e o sentido que poderei dar a tudo isso. Amanhã.
Não posso vestir outras roupas. Cada vez que toco nos panos ainda inteiros que encontro pelo caminho os desfaço. De modo que a cada minuto torno-me mais nu. Na verdade nem sei como estamos vivos ainda, porque a água que tocamos transforma-se em algo que não sei bem o que seria. É como um dividir-se. Decompor de átomos a desfazer a água que beberíamos.
 O que nos resta, parece, é só ver. Primeiro foi um transitar de muitas gentes. Aos poucos, nós poucos, começamos a ver as pessoas a se desfazerem. Não havia aquilo que conheci no passado como gritos de dor. Não havia desespero no olhar. Parecia um querer se quebrar no vácuo de cada uma dessas pessoas. Sobramos o quê? Tenho medo de perguntar, porque isso seria me dizer. Não sei o que comigo pode acontecer. Espaço.
Ao ler as últimas frases fui acometido de um espaço. Todavia não terminei. Não me desfiz. A sensação era só o espaço. Ruuuuuuuuu um som do vazio interno. O que será isso? Não posso pensar, dirigir minha percepção para o que é meu configurar espaço.
 

 Meu camelo parou de andar. Parou. Desci dele. Pisei sobre escombros do que sei lá o que era aquilo. Canos, parecem canos, porque se estão fazendo em pedaços que, pontiagudos, machucam-me a sola dos pés. Sangra. Líquido vermelho. O sangue escorre e não se desfaz. Esfrego, então, a palma até rasgá-la e ver sair esse único líquido no qual pude tocar sem que ele deixasse de sê-lo. Bebo. Alimento. Boca, fel, sensação fel de nutrimento. Olho para a palma e vejo as linhas do que era. Olho e vejo as linhas do que sou. O que sou? Nem mesmo a areia desse tempo me roubou a sensação do que pude sentir que sou. Corpo escorrido de dentro o sangue, alimento líquido viajando em retorno. Não vazio. Não espaço. Antes cuido que sou dentro. Carne e líquido. Camadas. É o caso de dizer que sou feito de avesso. Entre minhas errâncias existem grotas para onde escorrem rios. Sou o avesso. O outro lado, que se arrasta pelas beiras. Corda roçada, tremida, eu sou a tripa.
Arremesso-me no abismo, na garganta sem água. A garganta em lança. Arremesso de faquir que arranca de si somente cacos. Sou o que se consuma, o que se consuma estilhaço.
Olho, continuo vendo. Olho para minhas mãos e não me desfaço. Digo algumas palavras em voz alta e pela primeira vez estou só. Não há quem esteja aqui ao lado que eu não possa tocar. Finalmente estou só. Ainda não sei quem sou mas já posso ver que estou só. Pude reler, pude reler e ver entre as coisas todas escritas o eco delas aqui dentro. Sinto-me dentro.
Estrada, agora há uma estrada aberta. Nela não há nem um sinal de escombros. É uma estrada que conduz a um imenso vazio de sol, cascalho e areia, areia mesmo, areia havida dos muitos tempos que a fizeram grãos. Espraio-me de priscas eras. Era o deserto, para onde eu finalmente ia.
(extraído do livro "Babel, é claro" - publicado em 2002.)

2 comentários:

  1. O ar do texto arranha meus olhos, lixa minhas narinas, entope meus pulmões, solidifica meu sangue. "Estase no" claro, Syvia Plath. Sufoco porque me identifico, meu animal me transporta pelo deserto.
    IvSam

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  2. Unknown... Infelizmente não publico comentários que não tenham algum tipo de assinatura. Mesmo que sejam elogios. Fico pensando - quem critica e não assina não assina a crítica. Por isso não publico. O mesmo se aplica a quem elogia...

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