Da estrada já era
possível ver as torres. Naquele contraste de céu e areia amarela, vermelha,
coral e azul, as torres verdes começavam a despontar imensas, ainda que a
milômetros de distância.
Armações em seis,
oito, quatorze, vinte e uma pontas de ferro esverdeado. Não se pareciam com
nada que eu jamais tivesse visto ou haveria de ver em minha vida viva. Seria
miserável compará-las a enormes e brutais eiffels porque elas eram armações que
tinham cerne; não se constituíam como simples emaranhados de ferro. Não eram
trespassáveis pelo vento ou pela areia, embora por elas, através delas, se
pudessem ver as colinas, enormes, que jaziam ao fundo no horizonte, nos
horizontes a toda a volta.
Isso tudo da
estrada, ao chegar, dava para ver. E o chegar era um chegar nunca, pois aquela
lonjura parecia cada vez mais invencível cada passo que se dava pela estrada.
Eu sabia que para alcançar as armações era preciso sair da estrada, abandonar
caminho. Era preciso aportar no nada, na areia líquida do deserto. Única
fronteira onde não há mais cercas, onde não há mais muros, onde não há
distância, porque o lugar é o chegar nele cada vez toda vez como se faz
constante.
Meu dia era ali a
saber que pelo menos as torres eu já conseguira avistar. E eu sabia que isso
alguns já haviam conseguido também. Era aguardar, pois, o momento em que
encontraria algum desses que habitam o já ver das torres da nenhuma distância.
Naquele dia parece que chegara o dia em que eu veria qualquer daqueles uns que
também viam.
Eu não viera a pé o
tempo todo. Ganhara um tanto do caminho ainda precisando de trem. Depois de
mais uns meses de lágrimas e de cavernas, de grutas por onde só escorrem
grotas, finalmente alcançara a fenda porta por trás portal, hélice que se abre
em núcleo, por onde aportam os que se dedicam ao fim de estar chegando. Essa fenda,
não sei muito bem como, eu venci voando.
Após chegar a uma
imensa garganta, vislumbrei um mundo de pessoas habitando. Nas escarpas de
pedra havia uma escada, que eu recusei descer.
Mas vim, continuei
vindo sem ver viv’alma, sem contemplar pessoa; tudo eram pedras, esmigalhar de
dedos pelo cascalho e as fendas que se abrem fundas a engolir os passos
atropelar a vinda.
Agora era ali a
contemplar as torres. Agora era a pé o meu caminho a passo. Um que eu
escolhera, foi o que me disse alguém que encontrei num antes de habitar o
instante.
Para cá ele fora
incumbido de trazer todas algumas nem tantas as selecionadas crianças. Seu
método era preciso, ainda que ele se apresentasse de modo risível. Um tipo
absurdo dirigindo um veículo igualmente improvável, que desde muito longe
chacoalhava-se em um bater de latas.
A primeira vez que
o vi foi o que ouvi que me chamou a atenção. Para lá do que eu seguia vinha
estridente e engonço aquele som. Era algo como uma enorme bicicleta de não sei
quantas rodas. Uma na dianteira sobre a qual ele se sentava e outras tantas
lado a lado paralelas a lhe perseguir. Ele mesmo parecia não compreender o
mecanismo da engenhoca que pilotava. Entretanto conhecia o importante de
arrastar para dentro dela o olhar das crianças que com ela encontravam.
Armação de
espelhos, cacos coloridos que, em lugar de refletir aquele que para eles
olhava, capturavam seu olhar e o seqüestravam para seu interior. Isso, ele me
explicou, era o que acontecia com apenas as crianças que eram para ver o que lá
dentro havia. Por esta via ele as deveria conduzir para as vinte e uma torres.
Quando lhe
perguntei por que então o que eu via dentro daqueles cacos era a minha vida em
momentos que eu não antes vivera, ele disse que não sabia nada o que fazer com
adultos que ainda guardavam esses olhos miríades de ver.
Um tanto de tempo
caminhamos lado a lado. Ele na sua bicicleta e eu no meu pequeno passo a passo.
Nenhum se perguntou como aquele acompanhar era-nos possível. Só ríamos do
caminho juntos; o meu, o circuito restrito; o dele, o chacoalhar e os raptos.
Ficamos assim
próximos até eu ver as torres. Foi então que ele me disse que dali eu teria de
vir só até um novo encontro. Antes de seguir foi que lhe perguntei por que eu a
pé e sem ninguém e ele me respondeu a resposta comum desse tipo de encontros.
Desde isso muito
aconteceu em diferentes circunstâncias até eu poder ver novamente o chegar às
torres. Tudo porque eu ainda andava por uma estrada.
As torres. O vê-las
não era bastante; o chegar a elas era o que implicava a trajetória. Pareceu-me
simples a alegria plena que senti ao contemplá-las naquele instante. Mas não
foi viva experiência, pois prosseguiu entrecortada. O ver das torres com o pé
na estrada. Vinco de caminho já trilhado não valia quase nada. Apropriar-me do
que vi era impossível, posto que a imagem oscilava. Embora soubesse ser preciso
abandonar o curso que eu seguia, todo e qualquer movimento meu se tornava
equívoco.
Todo o lugar para
onde eu me voltava inaugurava a senda de um destino único. Essa era a miséria
de ainda ter os pés pousados sobre a estrada. Deitei portanto meus passos no
leito seco asfalto já que não havia como deixar de sempre ver com margens o por
onde eu ia. Esse, eu tinha conhecimento, era o principal erro para quem já teve
no horizonte dos olhos o além dos olhos as lâmpadas do além da mente o
pressentir paisagem, abandonar miragem do vago ver. Para quem só de ser o cerne
das torres podia experimentar viver.
Na vinda não
encontrara ninguém até ali que se pudesse identificar como quem vira as torres.
Exceto o da bicicleta, que eu percebera.
Então, longe de
descansar na beira, procurar a sombra, decidi seguir no curso traçado pelos
meus pés ante pés. Julgava alguém mais poder encontrar. Mas dissolver da imagem
se fazia constante cada vez que erguia a face para o fim da estrada. Não via
nada e de não ver vagava vagava. O que só podia enxergar naquele caminho ido
era o meu trafegar pelas bordas precisas que se faziam marcas. Marcas do
lembrar era o as torres não mais poder enxergar.
Mas um dia não
sabido meio acaso, em que a luz do Sol era entrecortada pela sombra de um
prenúncio, deu-me a vista com os poros da toda pele um sentir do vento que circunda
as torres. Vento que me implorava a distância que me erguia o gesto para o
vasto de despojar o corpo no navegar errante. Nesse dia pelas botas barras de
calças e cintura vislumbrei o existir alguém para além da minha circunstância.
Ver era o assombro
das linhas que surgiam e trafegavam como outras gentes. Ver dois; pôr mais,
surpreender muitos. Inescapados errantes os viandantes eram já tantos os que
emergiam vivos algumas vezes ali na película da neblina da manhã. Era uma
multidão pressentida que ora aparecia ora desaparecia. Mas muitos dos passos
por outros dados ao meu lado eu já podia sentir. Não tocá-los. Senti-los vir
sem chegar a ver.
Camuflagem do desvio:
Sol a pino árido e seco. Não havia ali mais ninguém quando tornei a me ver.
Isso foi bem antes. Quando pela primeira vez senti que era e tinha dedos. Foi
de uma solidão de crise ver-me saltado destacado e nenhum comum a misturar-se
com meu corpo. Isso foi bem antes.
Agora que começava
a sentir os todos próximos peles e nervuras poros e suores vicejava no caminho
um ralo e estranho mato que naquele solo infértil era sem dúvida impossível de
conceber. E no entanto estavam ali aquelas hastes; relva capim matinho verde a
se espraiar abaixo dos meus passos a refrescar meus olhos.
Aquela cor e mais
textura, aqueles ramos se entrelaçavam a minha frente e me levavam a perder.
Tanto era incrível que ali cresciam que me pus a pesquisar de que modo se
organizavam com que freqüência surgiam em que direção mais incidiam.
Era a olhar pelos
lados e rodar o corpo e rir gargalhadas pelo vicejar das folhas linhas abordar
o que quando vi já não era mais estrada nem caminho. Tudo era uma trama de
gramíneas a devolver meus nervos para a superfície e esquecer que vinha pele
passo e corpo cérebro por uma antes estrada.
Não havia mais o
sulco. O leito de terra batida pisado pelos meus pés ao longo de toda aquela
empreitada. Não havia mais nada. Somente eu e uma imensa superfície gramada.
Era o verdejar naquele inexplicável e silencioso e desmesurado ainda deserto. Mas
eu não estava mais na estrada. E vi-me e às torres cordas de um único viver. Eu
era o âmago e me sentia sê-las de um modo que nenhuma palavra é hábil para
descrever.
Nisto surpreendi-me
pedalando uma bicicleta de sete ou treze rodas, inúmeras cordas chaves espelhos
cacos de muitos vidrilhos. Lado a lado vinha aquele antes e vinham outros em outras
embarcações em naves em armações de arame a rodar cada um um par de pernas os
seus próprios pedalares. Éramos uma horda de diferentes aros. Vínhamos pela
frente e pelos lados. E eu quando ri me vi de novo olhando o espelho daquele um
do encontro: era os que o espelho me mostrava mas a risada me deu o tom de que
eu ainda observava.
Será possível que
eu voltara para a estrada?
Isso foi quando
pelo espelho eu vi o que fora o passado o que eu desconhecia. Assim retornei ao
pó ao pé ao que parecia de novo a estrada. Quando vi me dei conta novamente de
que não aportara a nada. Nem pedais ou espelhos nenhum um me acompanhava: tudo
era um estar outra vez entre passos entre linhas entre paredes entre ver no
nada entre o desconcerto do que se me afigurava tão palpável concreto
mensurável entre o que tinha borda quina e se fazia superfície lisa ou áspera
ou fria e se fazia superfície opaca que mais uma vez me comprimia.
Tudo era o voltar
velocímetro a rodar novamente pela estrada calcular quilômetros prescrever
conquista a cada passo palmilhado pelas rodas do automóvel nada móvel nada meu.
Foi quando então
pude perceber o vir das torres. De dentro. Malhas de ferro entranhas
verde-ofusco. Como então pude ver-me ali detido ao obscuro do dentro
entremeadas entremalhadas entranhas da nervura dentada. Aquela que mordia os
dias a transformá-los na experiência. Era um voltar confuso para o dentro das
torres vislumbradas.
Passo de nenhum
caminho. Eco das infinitas memórias. Havia ali um só destino. Um só destino a
me circunscrever. Um apenas eu a me fazer a mesma pergunta. Um espelho inteiro.
Nenhum caco. Ralo a trair todas as substâncias. Naquele eu não poderia ver
outro. E no entanto era, e como!
a chave do que era
em mim
Como uma fonte de
matéria reflexa eu vi ali o que não se conjura o que não se representa o
instante do nenhum dia do nenhum semblante do nenhum lugar.
Tantos andavam ao
lado de mim e me olhavam estranho. Não me perguntava mais como numa terra de
estranhos eu era o ainda mais estranho.
Solitários passos
pelos corredores e escadas até chegar solene naquela ante-sala. O que podia
esperar viver depois de toda essa jornada?
Além do além
abriram-se-me as folhas em portas de par em par. Foi só nesse momento que eu
soube que íamos nos encontrar. Não tive surpresa ao ver-me ali e a ti sobre o
piso finalmente a se materializar. A tua túnica era do azul mais lazúli que eu
já vira. Eu por minha vez vestia algo que não me cobria. Foi o que senti ao ver
tua mão sobre meu plexo: as ondas do eu que era o que então havia.
Depois disso
caminhamos pela sala lado a lado e pude reconhecer que um manto me
circunscrevia. Éramos as mãos e os pés e as pernas a comungar destino por toda
aquela sala. O que vira de mim ainda era pouco quando ali pela primeira vez
estivera. Vira-me e os dedos e as bordas e a pele e me achara sozinho. A tua
presença não percebi a não ser por uma apreensão. E era dela que eu fugira sem
que me pudesse dar nenhuma explicação. Essa foi a outra vez. A que eu estava
vendo pelo teu semblante. A que pude aceitar por ser presente sentido pelas
minhas fibras. As torres eram e eu ali estava e aquele instante se cumpria em
mim. O vir das mãos as inúmeras rodas a bicicleta de espelhos o por onde eu ia.
Era no deserto. Eu
nunca ouvira falar das torres até então. Mas o que sabia era que daquele caldo
de luz quente onde submergira me faria outro me faria ver o que de mim não
supusera ser.
Era no deserto.
Todo o árido da areia era cor. Qualquer grão caco de multifacetada instância.
Tudo era brilho e um cavar dos pés no solo fino. Andar cavando pés num esforço
de pernas e o sol no crânio a travessia. Transbordar como se por paredes tênues
eu passasse. A amplidão era um obstáculo de garganta a me engolir e a digerir
meu corpo meus anteparos de pele e músculos e a me devolver a uma outra estada.
A madrugada ali e o
azul escuro universo a plantar-se no meu corpo imerso no agora que eu era.
E foi dali que eu
parti. Do espelho. Estava escuro, estava claro, você sabe, como sempre. Estava
no lusco ofusco amanhecer do dia. Era domingo era um domingo verde dia. Olhei
para mim dali do espelho e vi que o sol batendo por trás naquela janela do
outro cômodo me dava uma que acreditava ser. Uma.
Alma que perseguia
para não ver as inúmeras vidas que por mim passavam. Inúmeras e azuis. Umas que
morrem pelo que ignorei sentir. Umas que vivem do meu simples resistir. Do
inocente passar pelo plano da tela. As vidas que julguei não viver.
Uma fatia pequena uma
lenta fatia. Uma parte da vida do que dura para sempre. Para além do nunca.
Para além do sempre. Instante a instante fotograma a fotograma. Uma pequena
fatia.
Apenas uma alma o
que julguei ver.
Inúmeros portais
transpassados: lâminas recortadas que atravessam a linha do
passado-presente-futuro: o que houve o que há o que há de vir.
Lâminas lentas
projetadas por sobre um pano.
(extraído do livro "um mundo outro mundo".)
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